1. Começarei pelo título da obra: A Mulher que Venceu Don Juan. À partida, a julgar pelos oponentes e pela semântica do verbo enunciado, sobressai a sugestão de uma guerra dos sexos, ou melhor, como se diria hoje, de uma guerra dos géneros. Um duelo entre uma mulher e um homem. É particularmente oportuno falar neste tema, sobretudo no dia dos namorados, dia esse consagrado à união de dois seres que se amam e, por conseguinte, que se entregam ao jogo da sedução. Como se constrói uma relação a dois? Estão os namorados – ou está o casal – num relacionamento de igual para igual? Há complementaridade e reciprocidade entre os dois? Na relação amorosa, que atitudes infundem respeito?
2. As questões levantadas, tal como o título, têm eco na cena d’«O Beijo», de Gustav Klimt, que a capa do livro exibe, e que sugere uma fusão de dois corpos, ao que tudo indica, por iniciativa masculina. É certo estar patente no icónico quadro do pintor austríaco uma grande ambiguidade e tensão. Nessa imagem, é possível ler a plenitude e a união de amor, mas também é possível ver uma certa mágoa e resignação na figura feminina. Uns descortinam nessa pintura uma representação da agressividade masculina sobre a mulher; outros, todavia, interpretam as feições da «amada» como uma expressão de êxtase e completude. É esta ambivalência que torna o quadro fascinante. Mas associado ao tema que o título do livro evoca, percebe-se que a interpretação aqui seguida reenvia para a imagem do opressor, visto a figura masculina não ser um homem qualquer. Trata-se de um tipo bem particular, de individualismo moderno, ou seja, o narcisista Don Juan.
3. Desde a sua criação no séc. XVII, Don Juan, o mítico sedutor insaciável, vem atravessando os séculos e todos os géneros, do teatro à poesia, passando pela ópera, o romance e o cinema. A paródias também não escapou. Como se sabe, a personagem aparece pela primeira vez na peça El Burlador de Sevilla atribuída a Tirso de Molina (pseud. de Frei Gabriel Téllez), antes de 1630, data em que o texto dramatúrgico foi publicado. A obra encena um sedutor cínico e cruel que vive o momento presente e recusa submeter-se aos códigos da sociedade e da religião. Com o argumento dessa peça teatral, abre-se a via às reescritas, sendo a veia literária revisitada por artistas e escritores em toda a Europa e mundo ocidental. Com Don Quixote de la Mancha, Don Juan será, sem sombra de dúvida, a outra criatura de papel nascida em Espanha que ganhará foros de figura universal. Desde a sua criação, tal personalidade não cessou de exercer um grande fascínio sobre criadores e públicos. Don Juan fascina porque nele se encarna a atitude desafiante ao sagrado e à ordem social e moral. A faceta de revoltado aproxima-o de Fausto e Prometeu, sendo que ambos desafiaram o divino e a condição mortal do homem. Todavia, Don Juan não deixa também de embaraçar, porque o seu impulso para o jogo da sedução se esgota no prazer da conquista, desprezando o outro, não fazendo caso do território íntimo que o outro encerra.
Um dos primeiros avatares mais bem-sucedidos de El Burlador de Sevilla, surge em França, em 1665, quando Molière leva ao palco o seu Dom Juan, um figurão que, apesar do castigo que o espera no final, cativa o público pela sua audácia, o seu brio, o seu sentido crítico e a sua constante reivindicação à liberdade.
No século XVIII, Carlo Goldoni transforma o sulfúrico e corajoso herói barroco num vil libertino chamado Don Giovanni Tenorio que acaba por implorar perdão, ao passo que Mozart faz evoluir o seu Don Giovanni com a singular ligeireza do conquistador impenitente, de uma sensualidade exuberante, até à espetacular cena final que o precipita para as labaredas do Inferno.
No século XIX, os criadores românticos veem em Don Juan um duplo insatisfeito e melancólico que, através das suas conquistas, procura o amor absoluto e a mulher ideal. O personagem é menos libertino, menos cínico e, nalgumas versões, chega mesmo a arrepender-se do seu comportamento passado. Não raro, apresenta-se como um simples joguete do destino que é até capaz de se apaixonar sinceramente. É mais ou menos assim que o pintam escritores de toda a Europa, como o alemão Hoffman, o inglês Byron, o austríaco Lenau, o russo Pushkin, o francês Mérimée e o espanhol Zorrilla. Em Portugal, entre outros literatos, Guerra Junqueiro sublinhará, em «A Morte de D. João», de 1874, a responsabilidade que o inveterado sedutor tem na corrupção dos costumes.
No séc. XX, as versões do mito donjuanesco multiplicam-se ainda mais. A figura, apesar de apresentar traços anacrónicos, é revisitada sob diversos enfoques: surge ali um Don Juan envelhecido, grotesco e absurdo; noutro lugar, entra em cena um sedutor que, contrariamente ao modelo original, procura ludibriar-se a si próprio, qual dandy do séc. XIX, com aquele ar de afetada indiferença; além, perfila-se um Don Juan inapto a amar, porque, simplesmente, não consegue entregar-se e ajustar-se a outra pessoa; noutro cenário, descortina-se um Don Juan explicado pelo viés de uma homossexualidade recalcada; acolá, Don Juan rivaliza com Casanova; quando lhe é oferecido a possibilidade de narrar-se a si mesmo, o personagem admite ser amante mais perseguido do que perseguidor; numa outra ficção, invertem-se os papéis de género, e D. Juan dá lugar a uma Doña Juana.
Em Portugal, tal como fizeram os italianos, aclimatou-se por uns tempos o nome do implacável libertino em «D. João» e é, sobretudo, na tradição dramatúrgica que parece ter lugar cativo: António Patrício, Natália Correia e Norberto Ávila deram-lhe vida nesse género literário. Todavia, Almeida Faria ousa quebrar a ordem das coisas e lança, em 1990, o romance O Conquistador, em que cruza sebastianismo e donjuanismo, num registo de humor paródico, quando não absurdo. Já no séc. XXI, José Saramago irá também dar, em 2005, a sua versão desse mito moderno. Ao contrário de Almeida Faria, Saramago retorna à escrita para teatro com o fito de revisitar a versão de Mozart. Se o Don Giovanni de Mozart é um «libertino punido», o de Saramago será um «libertino absolvido». No desenlace, o eterno burlador não será castigado pelo divino, mas sim pela astúcia das mulheres, que conseguem desmontar-lhe a fama em vida e torná-lo motivo de chacota. Como é habitual suceder na obra saramaguiana, a salvação do homem, por muito pecaminoso que tenha sido, virá de uma mulher: é por ela conquistado e acaba por aprender a ser um homem comum.
4. Sem contemplações para com o figurão, seja ele denominado D. Giovanni, Johannes, D. João ou Monsieur Jean, o romance de Teresa Marques situa-se noutra linha de atuação: desmascarar perfis com necessidade compulsiva por sedução, tendo em conta o perigo que representam para os mais incautos ou fragilizados. A escritora não deixa de prestar a devida homenagem a alguns dos seus predecessores, por via das epígrafes que abrem o romance, reivindicando para si essa tradição literária sem fronteiras. Recupera a estrutura narrativa habitual do mito, assente nas seguintes invariantes: 1) encena-se o sedutor da alta sociedade que multiplica as conquistas; 2) este encarna o ser da desmedida, ao desafiar as instituições políticas, a consciência moral e a esfera sagrada; 3) no desfecho, confronta-se a uma forma de justiça sobrenatural ou humana, que põe cobro à sua carreira de sedutor. Porém, a romancista vai configurar a diegese a partir de contextos bem portugueses de violência doméstica e familiar que, como se sabe, pode manifestar-se de três formas: a violência física, a violência sexual ou a psicológica. E se a autora refere na sua obra, de várias maneiras, o Diário de Um Sedutor, de 1843, do dinamarquês Kierkegaard, tendo este partido, por sua vez, da análise que faz do D. Giovanni de Mozart, é para melhor dar a entender ao leitor que este seu romance se apresenta não só como uma explicação da entidade sedutora compulsiva (com um forte investimento na caracterização do seu perfil psicológico), mas também como um «manual de sobrevivência» para as vítimas de personalidades com síndrome de don-juan. Com efeito, três tipos de sedutores encartados serão aqui encenados, todos eles aparentados a um parasita social: um don-juan manipulador, perverso, egoísta e envelhecido, um outro, histriónico, invejoso, consumido por desejos inconsistentes que encobrem a sua pulsão homossexual, e uma versão feminina do donjuanismo, fria, calculista, arrogante e focada no dinheiro. Volto à questão inicial: que tipo de relação se pode esperar quando lidamos com uma pessoa destas? Certamente, «amor convergente» não será.
Só mais três notas:
A Mulher que Venceu Don Juan tem a particularidade de ter sido o primeiro romance-folhetim português publicado no Facebook (2012-2013), ou seja, foi dada a ler na rede social como uma narrativa seriada, antes de ser editada em volume, com uma nova versão revista e aumentada. Faz assim lembrar o processo de escrita dos folhetins do séc. XIX, de cuja poética é o romance de Teresa Marques devedor, ao desconstruir-lhe as componentes formais e temáticas para reconstruí-las à luz da nossa contemporaneidade. Tal como a narrativa folhetinesca oitocentista, A Mulher que Venceu Don Juan apresenta aquele modo próprio de escrita fluente, ágil e acessível, com ganchos para agarrar os leitores e sob o eventual influxo das preferências deles quanto ao desenrolar da ação. Neste caso, foram os seguidores da autora no Facebook que, ao darem o seu feedback à medida que o enredo avançava, colaboraram de algum modo na sua elaboração. Uma ilação é clara: graças a este procedimento, a autora deu um bom exemplo de utilização de uma rede social, contrariando assim ideias feitas sobre o uso e abuso dessa plataforma em linha.
Não posso também deixar de fazer notar que o romance A Mulher que Venceu Don Juan foi distinguido com o selo do Plano Nacional de Leitura, o que é, por si só, garantia da qualidade literária quer ao nível da escrita romanesca, quer ao nível do tratamento dos temas: sim, é o tema da violência doméstica entre marido e mulher que perpassa em toda a obra, mas o que move a trama é a tocante história de um amor inesperado que vai prender a leitora ou o leitor até à última página. Não admira, assim, que o livro seja recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de Leitura.
Na verdade, a obra oferece uma leitura empolgante, com uma ação habilmente encadeada, cheia de peripécias, numa engrenagem muito bem montada. Está escrita numa linguagem clara, sem rebuscamentos, mas perpassada de ironia. Não faltam jogos de intertextualidade, piscadelas ao leitor e algumas cenas surpreendentes, se não mesmo desconcertantes. A autora dá lugar a um narrador que toma partido pelos bons da fita em detrimento dos maus. A própria não tem medo de escolher de que lado quer estar: por isso, introduziu na intriga a personagem do nobre vigilante, uma espécie de anjo da guarda, que protege a heroína da iniquidade daquele que a quer manter sob o seu controlo. Além disso, a obra de ficção faz ligações diretas a temas e problemas do tempo histórico em que o enredo tomou forma (os anos de 2012 a 2013), e leva o leitor a vários cantos do país, do litoral ao interior e do Norte ao Sul. Nas páginas do romance perpassam conselhos práticos, diálogos que soam naturais, e até frases de efeito que convidam o leitor a fazer delas guias da vida…
O romance é, pois, multifacetado e assumidamente comprometido com várias causas, tais como a emancipação e valorização da mulher através da formação académica e do amor baseado no respeito mútuo, a consciencialização das desigualdades económicas como instrumento de reequilíbrio social, a relevância da literatura na formação humana nesta nossa era pós-humanista e a importância do voluntariado como mola propulsora da cidadania. Além de revelar toda a magia de um bom folhetim, o livro em apreço nunca abdica da profundidade que os temas explorados requerem.
Se, como sublinha – e bem – o slogan de uma campanha a decorrer atualmente numa rede de canais televisivos contra a violência no namoro: «S. Valentim que nos perdoe! Onde há violência, não há romance.», é caso para dizer que a história sobre violências e violações aqui narrada deu um grande romance.
Porque li este livro com prazer e muito interesse, só me resta recomendá-lo àqueles que têm o bom gosto de ler bons livros.
Bibliografia de apoio:
CASTAGNA, Vanessa, «Andanças literárias de Don Juan : o caso português de O Conquistador de Almeida Faria», Studi di Letteratura Ispano-Americana, n.º 36, Roma, Bulzoni Editore, 2002, pp. 41-78.
SILVA, Delfim Correia da, A sedução no mito de D. João, Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares apresentada à Universidade Aberta, em 2007. Disponível em https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/604/1/LC435.pdf, consultado no dia 10 de fevereiro de 2020.
Thierry Proença dos Santos
Thierry Proença dos Santos (Paris, 1966) foi docente na Universidade da Madeira, entre 1992 e 2019. Doutorado em Linguística Aplicada desde 2007, desenvolveu pesquisas e estudos sobre aspetos culturais, literários e linguísticos da Madeirensidade. É membro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL). Atualmente, exerce funções como técnico superior na Câmara Municipal da Guarda. Participou em várias iniciativas editoriais com artigos. Organizou ou coorganizou obras comemorativas, antologias literárias, coletâneas de poesia, volumes de ensaios, um número especial da revista Margem 2, e foi o responsável pela reedição de dois romances: Uma Família Madeirense, de João França, e Canga, de Horácio Bento de Gouveia. Publicou a monografia Comeres e Beberes Madeirenses em Horácio Bento de Gouveia, em 2005. Na Madeira, não descurou a intervenção cultural.
[14 de fevereiro de 2020, 18h00, Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço – Guarda]