A Mulher que
Venceu Don Juan insere-se numa longuíssima série que tomou por tema o mito de
Don Juan, cujo marco inicial se considera El Burlador de Sevilla Y Convidado de
Piedra (1630), de Tirso de Molina. Segundo Jean Rousset, um dos grandes
estudiosos do donjuanismo, Don Juan é e não é um mito. Em primeiro lugar os
mitos não têm autor, conforme nos ensinou Lévy-Strauss. Os mitos vivem de uma
longa história oral, ou seja na tradição anónima, ao contrário desta figura de
que se conhece perfeitamente a paternidade literária. Todavia, a história de
Don Juan rapidamente se autonomizou, relativamente ao texto fundador, e tem vindo a passar de obra em obra, como se
pertencesse a todos e a ninguém. Nesta característica reconhecemos um traço do
mito, isto é o anonimato ligado à sua capacidade de persistir no inconsciente
colectivo, mito sempre pronto a ressurgir e a sofrer alterações que lhe
conferem plasticidade. [1] Sabemos bem do que falamos quando falamos de Don
Juan, porém ele assume aspectos muito diversos
ao longo da História Literária.
Alguns dos nomes fundamentais que ficariam ligados a este mito serão:
Don Juan ou Le Festin de Pierre (1665), de Molière; Don Juan Tenório, Osia il
Dissoluto (1736) de Goldoni; Les Liaisons Dangereuses (1782) de Laclos; Don
Giovanni (1787) de Mozart / Da Ponte; Don Juan (1819-1824) de Lord Byron; Don
Juan Tenorio (1844) de Zorrilla; O poema de Baudelaire «Don Juan aux enfers»
(Les Fleurs du Mal - 1857); Man and Superman (1903) de George Bernard Shaw; Les
Exploits d’un Jeune Don Juan (1911) de Guillaume Apolinnaire; La dernière Nuit
de Don Juan (1921) poema dramático de Edmond Rostand; Supplément à Don Juan
(1831) de Colette; Le Mythe de Sisyphe (1942) de Camus; Don Juan ou la Mort Qui
Fait le Trottoir (1958) de Henry de Montherlant; Terra Nostra (1975) de Carlos
Fuentes.
Alguns, entre os
portugueses: A Ondina do Lago (1864) de Teófilo Braga; A Morte de D. João
(1874) de Guerra Junqueiro; O Último D. João de Guilherme de Azevedo
(poesia-1874); o poema «A Última fase da vida de D. Juan» de Gomes Leal,
inserto em Claridades do Sul (1875), O poema «D. João» (1906) de Silva Gaio; A
Alma de D. João (1918) de Rui Chianca; poema «D. João» (1920) de João de Barros.
A fábula trágica D. João e a Máscara (1924) de António Patrício (a obra-prima
portuguesa dentro desta temática); a peça D. João Tenório (1920) de Júlio
Dantas; O Castigo de D. João (1948) de Urbano da Palma Rodrigues; Um Amor Feliz
(1986) de David Mourão-Ferreira; O Conquistador (1990) de Almeida Faria. Outros
poderíamos ainda referir, mas para não alongar mais a lista cito, por último,
um João de Távora, que encontramos em Partes de África (1991) de Helder Macedo.
A Mulher que Venceu Don Juan trata o tema não
apenas descrevendo o comportamento donjuanesco ao nível da acção, mas indagando
e mostrando algumas causas desse comportamento, assumindo, por esta forma, uma
vertente de análise psicológica e filosófica, focando a psicopatia, o
narcisismo, a homofobia, que existem na raiz do comportamento donjuanesco,
e baseando-a numa componente
ensaísta através da qual se intercalam
textos do Diário do Sedutor de Kierkegaard. Aceita-se hoje que o donjuanismo
pode apresentar-se como camuflagem de homossexualidade recalcada. Tratando-se
de uma questão muito complexa, e querendo discuti-la teoricamente dentro do
entrecho ficcional, coloquei uma jovem doutoranda a preparar uma tese sobre o
Diário do Sedutor de Kierkegaard, que fecha
Enter-Eller (1844), obra na qual Don Juan faz a sua entrada no universo
da filosofia.
A peça de caça
tem interesse enquanto está viva e pode eventualmente fugir. Logo que é caçada,
o objectivo foi atingido, atira-se morta para o lado, ou empalha-se como
troféu e passa-se a nova presa. Mas há uma particularidade muito interessante
na última frase do discurso do sedutor:
“Se eu fosse um deus, faria com ela o que Neptuno fez com a ninfa:
transformava-a em homem”.
A ninfa a que se alude é Cénis, que foi
transformada por Posídon em Ceneu, o homem por quem ela se tinha
apaixonado. Este desejo expresso pelo
sedutor de mudar o sexo da amada, em processo fusional de assimilação, é bem
significativo do recôndito desejo do sedutor. Através do coleccionismo o
sedutor, mais não faz do que camuflar a sua insatisfação de que a mulher
não possa ser transformada em
homem, como a ninfa Cénis. O verdadeiro objecto do desejo é outro homem:
o namorado da jovem seduzida, sendo ela
a ponte entre ambos. Esta a razão pela qual o sedutor só deseja jovens comprometidas
com outro homem, o namorado.
Heterossexual
compulsivo, Don Juan acumularia aventuras para se afastar do objecto do seu
desejo: outro homem. Seduzindo a mulher
de outro, Don Juan estaria
inconscientemente a relacionar-se com o marido / namorado, motivo maior de seu
prazer, sendo a seduzida a ponte entre eles conforme assinala Sandór Ferenczi que publica,
em 1922, Le Symbolisme do Pont et la Légende de Don Juan, metaforizando fantasmas edipianos e
homossexuais: Entre Don Juan que passa na margem esquerda do rio com um cigarro
apagado na boca e o diabo que fuma na margem direita, faz-se uma ponte sobre a
água negra, que vai permitir acender o cigarro de Don Juan. Edipianismo,
homossexualidade latente seriam as linhas de força do mito, visto da
perspectiva de Ferenczi. Ainda na mesma linha, a disputa com outros homens-ponte fará dizer ao
Don Juan de Carlos Fuentes : "Nenhuma mulher me interessa se não tiver um
amante, marido, confessor ou Deus, ao qual pertença ...".
O médico espanhol
Gregório Marañon, na obra Don Juan, Ensayo sobre la Leyenda, de 1940, considera
D. Juan um personagem escassamente viril, indo contra a ideia popular e até
erudita que a ele se associa, como lemos em Urbano Tavares Rodrigues.[2] Para
Urbano “ o donjuanismo radica num pletora do instinto sexual ou numa limitada
avidez de absoluto.”
Estes textos teóricos aparecem no meu romance como espelhos
da intriga ficcional, através do subterfúgio de uma tese de doutoramento que a
personagem Manuela prepara e defende sobre este mesmo tema.
Teresa Martins Marques
Teresa Martins Marques
[1] Jean Rousset, Le Mithe de Don Juan, Paris, Armand Colin,
1976, pp.6-7.
[2] Urbano
Tavares Rodrigues, O Mito de D. Juan e o Donjuanismo em Portugal, Lisboa,
Ática, 1960. Assina o verbete sobre esta
temática na Enciclopédia Biblos (vol 2, 1997).
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