Maria Carlos Lino de Sena Aldeia |
O romance A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, possui um
tão forte dinamismo na acção que cria em nós, leitores, uma curiosidade
crescente à medida que a trama se vai desenvolvendo. Todavia, esse nosso desejo
é coarctado pelas constantes pausas na evolução da intriga e pelas investidas
de um narrador erudito que nos presenteia com um manancial de informação de
pendor didáctico e de intenção pedagógica. São vários os pretextos que
sustentam esta intenção, mas ressalta-se o das viagens e deambulações e que
privilegiam espaços como Lisboa, Tavira, Porto, Vila Real, Torre de Moncorvo.
Nestas viagens e deambulações realizadas por Sara, personagem cuja vida esteve
fechada num parêntesis de anestesia e que precisa de aproveitar o tempo perdido
e de exorcizar os seus males (e neste sentido as viagens podem aqui ter um
alcance de peregrinação) reflecte-se muito sobre a cultura do nosso povo,
revisita-se e reinvoca-se o passado através da história de monumentos ou de
edifícios de interesse público, tais como, a Fortaleza da Torre Velha (de
Caparica), a Igreja da Misericórdia de Tavira, a Igreja Matriz de Moncorvo ou o
Café Majestic, relembram-se tradições e
costumes. Mas este narrador, omnisciente ou investido na pele de alguma das
personagens, não se fica por aqui na prestimosa oferta de informação: ele
discorre eruditamente e com comprazimento sobre
temas literários, com abundância de referências e citações de autores, sobre filosofia, psicologia,
cultura, enfim. Desde notas biográficas sobre D. Francisco Manuel de Melo até
explanações sobre intervenientes na guerra civil de Espanha, passando sobre
excursos desenvolvidos sobre Kierkegaard em Diário de um Sedutor, ou sobre as
diversas figurações donjuanescas ou ainda sobre os malefícios de um envolvimento
obsidiante em qualquer tese de doutoramento, o leitor confronta-se nesta obra
com um deleitoso manual de cultura.
Da temática da obra releva-se o tema fulcral, que é o
donjuanismo, nas suas múltiplas representações, no masculino e no feminino. Derivados
deste tema achamos outros, como o da violência física e /ou psicológica, o
masoquismo e o medo. Um outro tema também abordado e que tem uma particular
importância nas sociedades actuais é o da tirania exercida pelos filhos sobre
os seus progenitores e a morte de um conjunto de valores antigos em que
prevalecia um distanciamento reverente entre a geração mais nova e a mais
velha, com os malefícios que tal pode aportar.
Toda a narrativa assenta num dualismo: eixo do bem versus
eixo do mal. Esta visão é-nos transmitida não só através das personagens, que
numa estrutura actancial se designariam por adjuvantes e oponentes, mas também
pelos juízos críticos do narrador, favoráveis e elogiosos (em geral) para uma
banda e depreciativos para a outra. Sendo certo que a bondade e a perversidade
podem habitar o mesmo sujeito (real), esta dualidade, apenas esbatida
pontualmente (por exemplo na personagem Manaças, que apesar de portador de um
sem número de defeitos possuía a virtude de amar a mãe), poderá parecer exagerada,
mas ela faz parte de uma intenção autoral, pedagógica ou outra, cabendo aos
sucessivos leitores o seu desvendamento.
O tema do donjuanismo, que no fundo é uma das múltiplas
expressões do mal, envolve activamente as personagens Amaro, Lúcia, Sara, Luís,
Joana e Manaças, é largamente teorizado e explicitado pela personagem Manuela,
pois a sua tese de doutoramento incidiu sobre SØren Kierkegaard: “Retórica
Amorosa de Don Juan: Sombras de Sedução”. Amaro, o Don Juan masculino, é uma
verdadeira alegoria do mal. Ele encarna o pior dos modelos de Don Juan a que se
junta uma enorme dose de psicopatia consubstanciada nos vários crimes que
cometeu. Socialmente é reificado porque ele personifica a contradição entre o
parecer e o ser. Pisou uma linha vermelha e perdeu o controlo da situação. É
uma personagem de cariz trágico, tal como Joana – o modelo de Don Juan no
feminino. Outra personagem do eixo do mal é Manaças que acaba vitimado. Sara e
Luís são apresentados ao leitor no início da narrativa como personalidades
enfraquecidas pelo torpor venenoso da aranha masoquista que a perversidade dos
respectivos companheiros criou neles. Conseguem, porém, com a adjuvância da
“deusa-mãe” Lúcia, perder o medo e desintoxicar-se do masoquismo. São
personagens que têm uma grande evolução psicológica. Lúcia, que como já se
referiu, cobre com o seu manto protector as vítimas do mal, experienciou ela
própria o aviltamento de Amaro. Sabemo-lo através de analepse, já em fase
adiantada da narrativa. Direccionou a sua existência, paralelamente com o seu
crescimento intelectual e profissional, para objectivos de cariz humanitário e
focalizou, ocultamente, especial atenção nas manobras maquiavélicas de Amaro,
prevendo e evitando a pior das tragédias. Verte na sobrinha, Manuela, o sentimento
maternal que a filha, Joana rejeita por ser narcisista, complexada e
prepotente. Na luta contra o “canibalismo” que a filha lhe fazia prevaleceu a
sua auto-estima é, por isso, uma personagem paradigmática.
O efeito de real assume nesta obra uma particular
importância. A diegese está muito alicerçada no real. O reconhecimento por
parte dos leitores de referentes empíricos espaciais, nos quais tropeça a cada
passo na narrativa, são-lhe familiares e podem despertar-lhe múltiplas
sensações e emoções. O mesmo se pode dizer para os referentes indivíduos, como
por exemplo, as reiteradas referências ao panteão docente da Faculdade de
Letras de Lisboa. Estes efeitos de real, se por um lado prefiguram uma intenção
da autora de exaltação de espaços, ambientes e indivíduos que lhe merecem
simpatia, estima ou admiração, imortalizando-os através da escrita, num
grandioso fresco da narrativa, por outro, prendem-se com a ideologia da mesma
autora, que criando verosimilhança, aspira
a mais facilmente fazer passar a sua mensagem de denúncia do mal – o
donjuanismo e seus satélites – e de fazer a apologia do bem, ainda que para
este ser alcançável haja que se passar por um processo alquímico de expurgação.
A contaminação entre o real empírico e a ficção é notória em toda a obra, como
se referiu, mas como seria se personagens desta ficção invadissem, por exemplo,
registos factuais (ou não?) como a história amorosa de D. Francisco Manuel de
Melo?
A intriga, tem o seu clímax na cena luxuriosa em casa de
Amaro e em que os requintes de perversidade deste vão ao cúmulo de violar o
próprio filho, o Manaças, e é, como já se referiu, emocionante. Ter-se-á
inspirado nos cânones do folhetim em moda no séc. XIX, “pingados a conta-gotas”
na imprensa escrita e deixando os leitores em suspenso até à publicação
seguinte. O modelo continua a fazer sucesso hodiernamente através do
“famigerado” facebook , criatividade que cumpre homenagear.
Realça-se ainda o levantar de duas grandes questões
ontológicas e que são, a imutabilidade da natureza humana e a origem da
maldade, genética ou não, as quais, não sendo profusamente desenvolvidas,
deixam na mente do leitor o vírus da reflexão, o qual anda às vezes tão
arredado da sua zona de conforto.
O léxico é de um modo geral muito cuidado, virtuoso mesmo,
alternando com linguagem coloquial sem excessos, mas adequada a algumas
personagens e situações. De referir também alguns regionalismos e arcaísmos que
poderão surpreender o leitor mais cosmopolita e menos familiarizado com eles,
como “figurão de alto coturno”, “Joãozinho de pacotilha”, “um azougue”. Da
linguagem metafórica realça-se a beleza da imagística “A jovem mulher começava a deitar raízes na
sua vida”, “deram ordem de despejo ao amor dos pais”, “empequenecer…”.
Muito falta dizer sobre a obra em apreço. Aqui ficam
registados apenas alguns dos muitos pontos de interesse pois a exaustão nunca
poderia figurar nos propósitos desta exposição. Muito mais se discorrerá e
escreverá ainda sobre a obra, augura-se, o que consolidará o seu indubitável
valor literário.
Para finalizar deseja-se salientar o grande prazer
resultante da leitura deste romance, A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa
Martins Marques, (estreia auspiciosa da autora no género) na sua dupla função
lúdica e pedagógica e que é integralmente cumprida. Termina-se citando, a
propósito, Lêdo Ivo “A leitura há-de ser sempre uma ética. Incumbe-lhe ensinar
o homem a respirar o universo” .
Lisboa, 29 de Janeiro de 2014
Maria Carlos Lino de Sena Aldeia
Nota curricular:
Maria Carlos
Lino Gonçalves de Sena Aldeia
Nascida a 22 de
Maio de 1948
Natural de Luanda – Angola
Licenciada em
Línguas e Literaturas Modernas, Variante de Estudos Portugueses e Franceses,
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Frequentou
vários cursos como o de “História da
Colonização Portuguesa no Brasil”, na Universidade Aberta; o curso de Cultura
Portuguesa na Escola Superior de Educação Almeida Garrett e outros cursos e seminários na Faculdade de
Letras de Lisboa no âmbito da Literatura, da Cultura ou da Filosofia.
Leccionou Francês na Junta de Freguesia de
S. Domingos de Benfica.
Escreve
ocasionalmente artigos sobre Literatura no Jornal As Artes Entre As Letras, do
Porto.
Colabora em
acções de carácter cultural com a ANAC- Associação Nacional de Aposentados da
Caixa Geral de Depósitos e com a Associação dos Antigos Alunos do Ensino
Secundário de Cabo Verde.
É aposentada da Administração Pública,
tendo exercido o cargo de Chefe de Divisão, no Ministério das Finanças. Exerceu
funções de chefia na área da biblioteca e da formação profissional e técnicas
na área da gestão de imóveis do Estado.
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