Imagine-se
o trabalho do autor do folhetim do século XIX, o ter de prender o leitor ao seu
texto, cativá-lo, fideliza-lo, de forma a fazê-lo seguir semana após semana, ou
mês após mês, a trama da sua novela ou romance. Imagine-se o escritor a esperar
que nas várias casas as meninas, mais os seus pais, as mães, os jovens
cavalheiros e mais as senhoras da copa e as criadas de dentro e de fora tenham
os corações a bater de entusiasmo, porque chega o jornal ou a revista com os
sonhados capítulos. E, depois, quando as páginas chegarem ao fim, o autor
imagina-os a suspirar de curiosidade pelo que se seguirá e que ainda está na
sua pena. Ágil, realista, rica de eventos, plena da emoção, das misérias e das
grandezas da condição humana, a narrativa era pensada na relação próxima com o
leitor, numa ligação de sedução, de cumplicidade e de mútuo incentivo
estabelecida entre o escritor e o seu público. O leitor sentia como suas as
palavras que lhe chegavam desse autor que teimava em lhe falar, como um vizinho
de casa, ou de coração. Teresa Martins Marques optou, antes da publicação em
livro do romance A Mulher que Venceu Don Juan, pela sua edição em capítulos no
Facebook, recorrendo e reinventando as técnicas do folhetim à nova realidade,
mas produzindo o mesmo efeito de outrora nos leitores que a seguiam – a
curiosidade pelo próximo capítulo, a alegria de ver chegar um novo, o sentir-se
preso a um fio de uma história que passa a viver connosco, como se as
personagens andassem lá por casa, os ambientes se interseccionassem, real e
imaginário unidos. Um efeito que me faz vir à mente a ideia do oblíquo, o de
Fernando Pessoa quando olhava cair a chuva.
A autora – com a mestria que lhe
vem do pleno conhecimento da técnica do romance e das possibilidades que esse
conhecimento lhe dá de renovação e recriação das tradições, produzindo um texto
romanesco novo, mas repensado à luz da sua história – tem, também ela, um olhar
“oblíquo” em relação à realidade que conta, capaz, “através” do que vê à sua
volta, de encontrar correspondências profundas, escondidas, que, com o desenhar
de retas, levam os vários elementos ao ponto central. Incisiva, Teresa Martins
Marques, traça percursos de escrita, de vidas, de histórias, de textos
literários, filosóficos, de sentimentos e olhares que se encontram,
obliquamente, e que fazem sentido, todos eles raios conduzidos a um lugar. E
não é dele que andamos todos à procura? O lugar que a autora nos faz descobrir
é o lugar do amor partilhado, respeitador de si e dos outros, por oposição ao
não-lugar do amor egoísta, possessivo, dominador e depreciativo do outro,
reduzido a objeto amado. Há narrativas que curam. Que salvam vidas, para usar
uma expressão aproximada ao título do livro de Donatella Bisutti, infelizmente
não traduzido em Portugal, A Poesia Salva a Vida. A Mulher que Venceu Don Juan
é uma delas. Salva as vidas, duas: a do leitor faminto de histórias que o
cativem e o realizem e a do leitor que procura compreender os vários mecanismos
da relação entre os homens, decifrando as viagens dolorosas que uma visão
doentia do amor pode obrigar a fazer. Sara vive o inferno do casamento com o
dominador Don Juan-Amaro, como Luís com D.Juan-Joana. Lúcia vive o inferno da
filha, que perspetiva a ligação entre pais e filhos não como recíproca, mas
como obrigação de amor incondicional dos primeiros. Depois, há as personagens
das mulheres no abrigo da APAV, de histórias de dor, marcadas por feridas que
custam a curar, pelo medo da violência de companheiros que podem sempre estar à
espreita na esquina. Todas elas num percurso de compreensão, numa via de
mudança, de ruptura, de transformação que, no respeito de si como pessoa e num
processo formativo difícil, as poderá levar a repensar mais amplamente a sua
própria biografia pessoal. São caminhos individuais e coletivos dolorosos, para
os quais a autora convida escritores, filósofos, pensadores como companheiros
de viagem, mas necessários para que os dominados pelos Don Juan se libertem de
uma realidade de subalternidade, de passividade e opressão. A verdadeira viagem
identitária nesta trama que envolve paisagens, ambientes e personagens é a da
reconstrução: a partir dos tempos (não é inocente que Sara recorde os momentos
formadores da infância ou que Lúcia tenha de fazer as contas com o seu
passado), dos mundos que se habitam e se revalorizam e, principalmente, a
partir da análise dos afetos. Esses afetos, vividos nas liberdades fundamentais
do ser humano, são o lugar. O tal onde se chega ligando os raios e os pontos
que fazem o nosso mundo e os nossos percursos.
Fonte:
http://www.tribunadamadeira.pt/?p=18711
Luísa Marinho Antunes Paolinelli é Professora Auxiliar no Centro de Competências de Artes e Humanidades da Universidade da Madeira, academia na qual é docente desde 1994. Fez o Mestrado em Literatura Portuguesa (Faculdade de Letras, UL, 1995) e o doutoramento em Literatura Comparada – Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira (UMadeira, 2004). Leciona nas áreas da Literatura Portuguesa e Brasileira, Estudos Literários e Estudos Interculturais (programas de segundo ciclo-mestrado). Publicou O Romance Histórico e José de Alencar – Contribuição para os Estudos Lusófonos(2009) e Cinco Sentidos Mais 2 – Sobre os Livros (2013), contribuindo de forma assídua com artigos, ensaios e capítulos de livros no domínio da Literatura Comparada. Faz parte da Comissão Científica de revistas como Kamen’- Rivista di Poesia e Filosofia (Itália) eRevista Confluências Culturais (Univille, Brasil). No campo da tradução, é responsável pela tradução de textos científicos e literários, como La Machina Lirica – Herberto Helder (Edizione del Leone, 2006), e pela edição e introdução crítica de autores de língua portuguesa para a revista Kamen’. É Conselheira Correspondente da Fondazione Nazionale Carlo Collodi (IT), membro da Comissão Científica do Centro Studi Sirio Giannini (IT) e coordenadora do projeto internacional “Estudos do Humor – Perspetiva Multidisciplinar e Multicultural ”.
Fonte:
http://www.clepul.eu/Ptg/ViewPerson/88
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