O livro que
Teresa Martins Marques acaba de publicar, A
Mulher que Venceu Don Juan, é um empolgante romance, que se revê,
folgadamente, no protocolo do “roman-feuilleton”, que fez fortuna em meados do
século XIX. Cultivaram-no, entre outros, Alexandre Dumas (Pai), Eugène Sue (Les Mystères de Paris, Le JuifErrant), Ponson du Terrail (Les Exploits de Rocambole), Paul Féval (Les Mystères de Londres, Les Amours de Paris), FrédéricSoulié (Les DeuxCadavres, Les Mémoires du Diable), ou, entre nós, Camilo (Os Mistérios de Lisboa) ou Eça/Ramalho (O Mistério da Estrada de Sintra).
O próprio
desta ficção, que se publicava, originalmente, semana após semana, nos jornais,
era arrastar, em continuada suspensão, uma interminável e sensacional intriga,
com pistas e contra-pistas, e revelações cada vez mais surpreendentes – e
sempre provisórias – à medida que a narrativa progredia e, no final, um
saboreado ajuste de contas, a que não havia que fugir e que tinha a função
terapêutica de limpar o fígado aos leitores e aos protagonistas do “lado
certo”. De tudo isto participa desenvoltamente este romance “moderno”, que a
autora quis que servisse de veículo, precisamente, para um ajuste de contas com
os Don Juans de serviço, os quais acumulam, não infrequentemente, o gosto de
coleccionar conquistas, com o gosto, não menos maligno, de maltratar, física,
psicológica e moralmente, as conquistas perpetradas.Neste aspecto, a criação do
monstro Amaro Fróis é façanha de
mestre. Como o é o dos outros “donJuans e Juanas” (o Manaças, a Juana), que se
destacam, como criação de personagem, com um relevo que deixa um pouco apagados
os restantes, que povoam o universo ficcional congeminado por Teresa Martins
Marques. Logo de entrada, a pequena cena da ceia, no restaurante Olivier, a seguir a um espectáculo de
ópera, em Lisboa, poderia ter a assinatura de um dos grandes mestres do
realismo: Flaubert, Maupassant, Martin du Gard.
Não se
trata, note-se, de um romance feminista e, muito menos, de um panfleto do mesmo
cariz. Teresa Martins Marques fustiga, com igual eloquência e abundância de
argumentos, Don Juans e Donas Juanas. Porque estas últimas existem, em igual
profusão, causando, a si próprias e aos outros, o mesmo teor de estragos que
deixam, atrás de si, os homólogos do sexo masculino. Para dar só um exemplo,
conta-se a história de uma autora e actriz francesa, Mademoiselle Dubois, que
se gabava de ter entretido, ao longo de um período de vinte anos, 16 537
“affaires”, ou seja, cerca de três por dia... Ao lado disto, o Don Juan
(Tenório), com as suas míseras 2594 conquistas, não passou de um “dinkytoy”.
Teresa
Martins Marques disseca, com mão experta de romancista, de ensaísta e de
psicóloga, este tipo de personagem ambíguo e devorador (inseguro) que é o
coleccionador de conquistas femininas (ou masculinas). Alguns especializam-se
em desflorar virgens, como o editor inglês Leonard Smithers (1861 – 1907), do
qual, Oscar Wilde, sublinhando, ironicamente, esta inclinação, dizia: “Smithers
adora primeiras edições.” A virgindade não é, no entanto, obrigatória, para o
orgulho do Don Juan. O importante é mudar,
isto é, largar a pessoa, uma vez comida – uma
vez. Por isso, mudar de mulher, mesmo não virgem, mesmo casada, é não
querer uma repetição, isto é, uma 2ª
edição da mesma obra.
Trata-se,
pois, de um livro – o de Teresa Martins Marques – não diria tanto de tese, mas antes de causa (ou de causas). Estas obras podem facilmente tornar-se
ensaios disfarçados de ficção, sendo, nesses casos, de leitura, em geral, menos
apelativa. Para o evitar, Teresa Martins Marques resolveu desposar o protocolo
capitoso e ruidoso do “roman-feuilleton” (no primeiro ciclo de Les Thibault – “Le Cahier Gris” – Martin
du Gard não hesitou em usar o cheirinho bom do romance policial, logo a partir
da 1ª página...) O “roman-feuilleton” cativa sempre o leitor, mesmo o moderno.O
apelo é tão forte, que se conta ter sido Eugène Sue – o dos Mistérios de Paris – em certa ocasião,
solto da prisão, para que a publicação de um seu romance em folhetins não fosse
interrompida... Cumpra-se a lei, sim, mas devagar! (Aqui fica o palpite, caso a
Teresa, no futuro, venha a necessitar de um precedente jeitoso!)
Sem deixar
de dar o seu a seu dono, isto é, sem deixar de reconhecer o que a leitura deste
livro tem de empolgante, devo, no entanto, acentuar que ele não é folhetim
quimicamente puro: mistura, galhardamente, a narrativa de acção sensacional com
o ensaísmo escarolado, bem informado, erudito e minucioso, às vezes, quase até
ao desespero. Montherlant fá-lo, com eficácia felina, nas páginas inesquecíveis
e magnéticas da sua tetralogia Les
JeunesFilles e um pouco, mas sempre
com grande desenvoltura, em toda a sua obra romanesca. Misturando alegremente
os géneros, ao contrário do que recomendava a retórica clássica, pois, dizia
ele, com maldade de boa pontaria, se a grande literatura clássica não mistura
os géneros, a vida não faz outra coisa que não seja misturá-los. Teresa Martins
Marques imita a vida e não a arte clássica – e fá-lo com descaramento saudável.
Misturar o douto ensaísmo e, mesmo, o material de construção de um
doutoramento, com os saltos de acção imprevistos, mais próprios do Rocambole,
dá-lhe, a ela, gozo, e, ao leitor, gozo e proveito. No entanto, a autora, por
vezes, exagera: quando, por exemplo, a protagonista Sara, fugida ao monstro do
marido (Amaro), resolve deambular, turisticamente, por Lisboa, a autora observa
que ela (Sara) “queria ver com os seus olhos o que lhe dizia o Guia de Portugal, na edição da Fundação
Gulbenkian, reproduzindo a 1ª de 1924, dada à estampa na edição da Biblioteca
Nacional, pela mão zelosa de Raul Proença.” Esta gratuita exibição de
conhecimento bibliográfico, inserida no miolo do fluxo da narrativa, soa,não
só, a despropósito, como se torna quase cómica. Digamos que a minúcia
bibliográfica, aqui, não rima com a música do fluxo novelesco. Não estou a ver
Martin du Gard, nos Thibault, quando
insinua a influência que terá tido, sobre Jacques e Daniel, a leitura de Les Nourritures Terrestres, a entrar em
precisões de autoria (André Gide), nem de editor, nem de ano de publicação, nem
de qual fosse a edição lida pelos dois adolescentes... Mais, o grande
romancista francês nem sequer indica o título da obra que tanta repercussão
teve em todo o mundo: transcreve algumas passagens mais escaldantes, que teriam
feito ferver a imaginação exaltada de Jacques e Daniel. É, a pensar nisto, que
pode causar alguma crispação toda a tralha bibliográfica, a atravancar a narrativa.
O mesmo se pode dizer de certos diálogos como o que se trava entre Lúcia e
Manuela, demasiado “didácticos” e artificiais, obviamente destinados a “passar
informação” ao leitor... (A propósito de Lúcia., seria interessante comparar o
aspecto funcional desta personagem com a personagem típica do
“roman-feuilleton”, exemplificada no príncipe Rudolfo, de um romance de Eugène
Sue, o qual assombra Paris, escondendo-se no baixo-mundo, punindo os maus e
recompensando os virtuosos, que, misteriosamente protege... Ver-se-á, no
romance de Teresa, que Lúcia andou, secretamente, por detrás de muita coisa
boa.)
Seja como
for, prefiro, francamente, o descoco indisfarçado do ensaísmo, que faz
contraponto desavergonhado com o cavalgar incontido das pistas escandalosas e
das revelações melodramáticas, aquecidas a temperatura de alto forno.
Resumindo
muito, Teresa Martins Marques produziu um primeiro romance forte, original e
denso, um material fogoso de debate, sobre um problema que assola esta nossa
sociedade, em tempo de crise: o da violência doméstica, o da perda de
auto-estima, num universo em que os valores se dissolvem e o bezerro de ouro se
torna o único deus reverenciado, sobretudo se entregue à fruição de poucos, com
o apoio e a bênção dos que nos governam, detêm o poder e abrem as portas do
inferno aos desprotegidos.
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