Carolina Freitas |
1. Como surgiu a ideia de escrever este livro?
Num domingo de Agosto de 2012, recebi um telefonema de uma
amiga dizendo que precisava urgentemente de falar comigo. É uma jovem mulher,
inteligente, bonita e culta. A voz dela traduzia uma profunda angústia. Nesse
dia completava 45 anos. O presente de aniversário que o marido lhe ofereceu foi
a ameaça de a atirar para o fundo de uma barragem. Ela tinha razões para acreditar
que ele poderia fazê-lo. Eu mesma recebi uma mensagem indelicadíssima
avisando-me que deveria afastar-me dela. Não só não me afastei, como essa
ameaça constituiu a motivação para escrever um romance-folhetim, que desse voz
às vítimas de violência doméstica. O donjuanismo é, não raro, a capa sob a qual
se escondem certas formas de violência com o falso rótulo de paixão ou até
mesmo de amor.
2. Começou por publicá-lo no Facebook. Por que motivo(s)
optou por esta via?
Quando criei a minha página do Facebook fi-lo com a intenção
de a tornar um espaço de homenagem à Literatura e à Cultura. Aí, comecei por
publicar ensaios relativamente longos sobre Cesário, Gomes Leal, Régio, Raul
Brandão, Miguéis, Régio e Nemésio, extraídos do meu livro «Leituras
Poliédricas», há muito esgotado. A recepção foi excelente e os leitores
fidelizaram-se. Estavam criadas as condições para uma publicação serial
retomando a tradição oitocentista.
3. E como foi esse processo? (quando começou e quando
terminou; publicava excertos, capítulos inteiros?...)
A publicação iniciou-se em Outubro de 2012 e terminou em
Maio de 2013. Ao longo de 28 sábados, capítulo a capítulo (entre as dez e as
doze páginas), publicou-se todo o romance-folhetim. A actual versão em livro é
refundida e ampliada.
4. Uma das possibilidades do Facebook é a interactividade.
Como aconteceu neste caso? Houve muitas pessoas a seguir este romance-folhetim?
E a comentar? Até que ponto essa interacção influenciou a sua escrita e a própria
história?
A interacção com os leitores foi permanente, não apenas para
transmitir opinião, mas também para dar sugestões de continuidade à história,
que aceitei por diversas vezes. Foram ultrapassados os três mil comentários,
incluindo neste número as mensagens privadas. O último episódio registou 196
comentários. A interacção epistolar é, aliás, característica do
romance-folhetim. Eugène Sue, aquando da publicação de «Les Mystères de Paris»
(1843-1844), chegou a manter um escritório para receber a numerosa
correspondência dos leitores.
5. Que balanço faz desta experiência?
O balanço é muito positivo. Entre as pessoas da minha
geração é ainda comum pensar-se o Facebook apenas como um meio perigoso e
viciante, sobretudo para os jovens. Ficou provado que é uma ferramenta com
extraordinárias potencialidades, se for usada de forma adequada. Foi também
muito importante o convite que o romance-folhetim recebeu da parte de Vania
Chaves e Isabel Lousada para encerrar o II Encontro Luso-Afro-Brasileiro «As
Mulheres e a Imprensa Periódica», que decorreu na Faculdade de Letras em Julho
de 2013, o qual registou a presença de muitos leitores, alguns vindos de
diversos pontos do país.
6. Que questões quis tratar em «A Mulher que Venceu Don
Juan?
Focam-se comportamentos violentos escondidos sob a capa
donjuanesca - o poder da sedução, as manhas e estratégias de caça, o narcisismo
e o recalcamento homofóbico, assentando numa componente ensaísta que discute os
seguintes textos : «Diário do Sedutor» de Kierkegaard; «Le Symbolisme du Pont
et la Légende de Don Juan» de Sandór Ferenczi; «Don Juan, Ensayo sobre la
Leyenda», de Gregorio Marañon.
7. Pode falar-nos um pouco destas personagens?
O entrecho ficcional inclui três personagens de fundo
donjuanesco. Amaro Fróis, cirurgião plástico, procura nas mulheres a vingança
de um passado tenebroso; Manaças, serial lover, recalca uma pulsão proibida;
Joana colecciona os namorados e os pais das amigas. Os três serão vencidos: o
primeiro por uma mulher que subestimou; o segundo pelo verdadeiro objecto do
desejo recalcado; a terceira por uma presidiária, cujo companheiro seduziu. A
protagonista, Sara Dornelas, escapa à morte e encontra o amor, realizando, pelo
estudo, um sonho antigo. Dois seres de eleição, a psicóloga Lúcia e Paulo, comissário
da polícia, assumem um papel decisivo no desmantelamento de uma rede tentacular
e no castigo dos criminosos, unidos por ignorados laços de sangue.
8. Creio que a sua primeira incursão na ficção foi um conto
intitulado «Carioca de Café» (2009). De que trata? E está publicado em livro? É
agora que se estreia no romance de ficção. Era um desejo antigo?
«Carioca de Café» é um conto publicado numa antologia
intitulada «Viana a Várias Vozes», edição da Câmara Municipal de Viana do
Castelo (2009), organizada pelo saudoso Fernando Canedo, director da revista «
Mealibra», órgão do Centro Cultural do Alto Minho. O tema fulcral é a denúncia
do preconceito relativamente à mulher brasileira em Portugal, com um pano de
fundo histórico: a «Chronica Adefonsi Imperatoris» e o Recontro dos Arcos de
Valdevez, objectos de estudo da personagem.
9. Como é a sua relação com a escrita? (costuma escrever?
tem 'diários'? contos, poemas, romances na gaveta?) É um prazer, uma
necessidade...?
A escrita sempre fez parte de mim, embora a parte publicada
seja no registo de ensaio. Mas, mesmo nesse registo, há uma dimensão que releva
de um tom mais comunicante, menos académico. Veja-se o título da minha tese de
doutoramento sobre David Mourão-Ferreira: «Clave de Sol - Chave de Sombra», o
qual intertextualiza um verso do longo poema In Memoriam Memoriae.
No meu estudo, quer ensaístico quer ficcional, prefiro os
temas que abalam zonas de conforto. E tanto a ficção como o ensaio podem
cumprir essa função, sem deixarem de ser o que inevitavelmente são: exercícios
de linguagem. Os dois registos conjugam-se. Há sempre uma ou mais personagens
que têm em mão um trabalho ensaístico. No caso de «A Mulher que Venceu Don
Juan», são numerosos os trechos de autores citados, entre eles D. Francisco Manoel
de Melo, Camilo, Kierkegaard e Stendhal. Há também uma dimensão histórica, aqui
concretizada num episódio da Guerra Civil de Espanha.
10. Tem dedicado a sua vida ao estudo e à investigação,
nomeadamente na área da Literatura e Cultura Portuguesas. De que forma vive
esse trabalho?
11. Que autores/projectos/trabalhos mais a têm apaixonado? E
porquê?
A minha regra de ouro é escolher sempre para objecto do meu
estudo os escritores da minha predilecção. Foi assim com José Rodrigues
Miguéis, autor sobre o qual nunca me canso de escrever e ao qual cheguei pela
mão de David Mourão-Ferreira, sobre o qual continuo a escrever, ampliando a
tese. Gosto de fazer voo picado sobre os textos, e delicio-me com as
micro-análises a mostrarem os bastidores da criação artística, para o que muito
contribui o trabalho arquivístico que fiz como responsável pela organização do
acervo davidiano, na Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1997 e 2004.
12. Actualmente, é investigadora no CLEPUL. Que projectos
têm em mãos? Também dá aulas?
Já não dou aulas e posso reservar todo o meu tempo para a
escrita e para acções de divulgação. Recentemente levei aos estudantes das
Universidades de Constanta e Bucareste vários textos sobre o tema do ciúme em
Miguéis, Régio e David Mourão-Ferreira. Foi uma experiência muito gratificante
e alguns alunos continuam a comunicar comigo, justamente na minha página do
Facebook.
Estou neste momento a trabalhar na biografia de Amadeu
Ferreira, jurista, professor, poeta, romancista, tradutor, uma das figuras que
mais contribuíram para o reconhecimento oficial da Língua Mirandesa como
segunda língua de Portugal.
13. Onde nasceu? Como foi o seu percurso até ir para a
universidade? O que a levou a seguir Letras?
Nasci na Guarda, onde fiz a escola primária. Frequentei
depois o Colégio de Nossa Senhora da Bonança em Vila Nova de Gaia, com
professores de alta qualidade, sobretudo nas áreas das Humanidades. Frequentei
os últimos dois anos do Liceu na Guarda, tendo como professor de Grego um homem
competentíssimo, Abílio Bonito Perfeito, autor do livro único e da Gramática de
Grego. Estranhei bastante a pacatez da cidade, mas rapidamente criei dois pólos
de interesse: a redacção do jornal estudantil « Riacho» e sobretudo um
cineclube, onde coloquei em prática a formação que José Vieira Marques, futuro
director do Festival de Cinema da Figueira da Foz, nos tinha ministrado num
Curso Livre de Cinema no Colégio de Nossa Senhora da Bonança.
Nunca mais esqueci o meu filme preferido desse tempo,«
Morangos Silvestres», de Ingmar Bergman. Quem sabe se não foi por isso que mais
tarde escolhi como tema de tese a memória e a inquietude…
Ir para Letras era uma inevitabilidade, sendo eu viciada na
leitura. Difícil foi decidir se deveria escolher Românicas, História ou
Filosofia. Escolhi Românicas, mas creio que nunca desisti verdadeiramente dos
outros dois cursos e, neste romance, mando fazer às minhas personagens os
trabalhos que eu não pude fazer como aluna.
Cf. O artigo de Carolina Freitas « Teresa Martins Marques -
Um romance-folhetim do século XXI» in «Jornal de Letras» de 22 /1/ 2012
(pp.15-16) .
Sem comentários:
Enviar um comentário