A violência é um polvo tentacular. Não raro bem embrulhada
em celofane com o falso rótulo de amor.
Teresa Martins Marques, A Mulher que Venceu Don Juan
Este é um romance especial por várias razões, sobretudo pela
sua qualidade formal e temática abrangente e actualizadíssima, mais do que
pertinente nos dias que todos nós vivemos numa sociedade que, por mais moderna
e liberal se torne, vive ainda presa a velhos usos e abusos aos direitos
humanos, uns reconhecidos pelos tribunais outros silenciados na longa noite da
nossa história social. Não haverá nada de exclusivamente “português” nestas
páginas, no que à violência física e emocional entre homens e mulheres diz
respeito, e ainda muito menos em relações que, como diz a epígrafe que escolhi
para este texto, se mantêm e se desenrolam durante dias e anos por entre a mais
descarada chantagem de todo tipo, em que um casamento ou outra relação menos
formalizada poderá se tornar numa outra espécie de escravatura, sem que as
nossas instituições possam ou queiram actuar como acção preventiva de tragédias
por demais anunciadas. É só ler os nossos jornais ou consultar os média em
geral para ver quanto sofrimento poderá acontecer entre quatro paredes – ou
mesmo na violência e abuso psicológico feito por palavras gritadas e utilizadas
mortiferamente como punhais. Estarei aqui muito fora dos meus temas habituais?
Creio que não. Pois este é um romance que também se ultrapassa si próprio, ou
no que poderá ter sido a intenção inicial da sua autora. Para além do que aqui
acaba de ser dito, entramos em páginas belas sobre o amor de igual para igual
entre dois seres humanos, ou entre um grupo de amigos, como entramos nos
corredores da academia lusa na nossa capital, assim como no pensamento
filosófico e na arte literária canónica do Ocidente. Não é pouco para uma
primeira ficção de uma autora desde há muito reconhecida como uma grande
ensaísta literária, especializada nas obras de José Rodrigues Miguéis e de
David Mourão-Ferreira, tendo habitualmente como pano de fundo da sua escrita
toda a história literária do nosso país, e em outras línguas, tal como acontece
de novo no presente livro. Venho aqui um pouco atrasado por algumas semanas
após a sua publicação recente, quando o JL lisboeta já lhe dedicou mais de três
páginas. Um sinal de força, sem dúvida, um reconhecimento que não acontece com
frequência nem naquela nem em outras publicações do género.
Antes de mais, vamos às circunstâncias do aparecimento de A
Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, actualmente investigadora
da Faculdade de Letras em Lisboa. Alguém já disse, mas relembro aqui: é o
primeiro romance português a ser publicado integral e originalmente no
Facebook. Teresa Martins Marques aproveitou os muitos leitores com acesso
imediato e gratuito às suas páginas virtuais como que num ensaio primeiro desta
sua obra. Eu próprio testemunhei como era esperado cada capítulo, e reconhecia
de imediato nestas páginas alguns nomes verdadeiros dos amigos e amigas que, ou
conheciam pessoalmente a autora ou então, estou em crer, a ela se chegaram por
estes e outros escritos seus. É raro, e desde há décadas caído em desgraça, o
chamado “romance de ideias”, foi o tempo em que a arte literária se virava para
si própria, com total desprezo por uma frase que dissesse alguma coisa
vagamente relevante para o leitor, e muito menos ainda para a cultura do seu
lugar e do seu tempo. Como diria João Barrento num dos seus livros de ensaios
mais recentes, O Mundo Está Cheio de Deuses, é preciso “repolitizar” a arte,
suponho que querendo dizer -- que contenha em si minimamente, no que à escrita
concerne, algo mais do que um jogo inconsequente e nem sempre estético de
palavras e frases desconexas, que se dirija ao meio social e cultural em que
está inserida espelhando as suas misérias, injustiças e opressões numa
demonstração de ética e estética, tendo o outro lado do coração humano como
contraponto. É essa a leitura que fiz e faço deste romance, que contraria muita
da nossa ficção inconsequente e quase ilegível, sem deixar de receber espaço
privilegiado em muitas das nossas páginas literárias ditas nacionais.
A Mulher que Venceu Don Juan tem como trama no seu centro um
casamento de longos anos entre um famoso cirurgião plástico no Porto, aqui de
nome Amaro Fróis, e uma esposa que ele queria dondoca e peça ornamental, mas de
origens nortenha e herdeira de uma grande fortuna, Sara, inteligente muito para
além da vontade do marido, sofredora de violências de vária natureza às mãos do
seu Don Juan, metido compulsivamente com haréns inteiros de mulheres,
traficante de drogas e prostitutas, identidades sexuais escondidas no seu
armário de luxo e de decadência absoluta, o homofóbico clássico e sem coragem
ou dignidade para assumir a natureza do seu ser autêntico. O que é dito de
homens, é igualmente dito de mulheres. O romance nunca quebra por uma só frase
o seu impulso narrativo de denúncia e revolta, de coragem e generosidade por
parte desta e de outras mulheres sofredoras que vamos “conhecendo” ao longo
destas páginas de linguagens simultaneamente escorreitas e eruditas, por vezes
entrando em zonas que ficam algures entre a ficção pura e o ensaísmo
(Kierkegaard ocupa um outro centro desta fulgurante prosa), sempre irresistível
para uma autora como Teresa Martins Marques. Não é a primeira vez que um
romance oscila entre um género e outro, mas aqui esses movimentos entre a
invenção pura e reflexão filosófico-literária é de uma fluência e significados
pouco comuns entre nós. Ler este romance é como que fazer um seminário em
literatura do nosso tempo vista pela psiquiatria mais avançada, o quotidiano
das violências domésticas e extra-domésticas reinventado e ao mesmo tempo
objecto de análise ponderada e fundamentada em obras dos mais diversos autores,
especialmente europeus. O donjuanismo aqui, seja masculino seja feminino, nada
tem de romântico, é o seu oposto – o imperativo da dominação absoluta do
“outro”, que se torna mera peça utilitária, a doença da conquista pela
conquista, a perversão da inocência, o sexo sem o mínimo prazer ou sublimação
para além do ego necessitado e inseguro. Bem-vindos às relações oficializadas e
legitimadas pela sociedade, mas que não deixam de ser outra espécie de
“alterne”, por onda ronda sempre a morte de mulheres que não têm a coragem de
enfrentar os seus opressores e abusadores psicopatas. É disto que é feito A
Mulher que Venceu Don Juan, e, como já disse, de algo mais.
A geografia desta narrativa vai do norte ao sul do país,
passando ainda pelo Brasil. Espreitamos também os corredores da Faculdade de
Letras, onde se passeiam os mais fraudulentos “géneros” universitários, quer na
pessoa de um ou outro aluno quer na de alguns “professores” que nunca deveriam
pisar tal território do saber, estes felizmente escondidos entre a grande
maioria de mentores e estudantes que o merecem, e os merecemos a eles – é nas
Humanidades que reside a nossa cidadania, é aí que se grava e se testemunha a
nossa memória colectiva, seja ela de dor e raiva ou de vida decente. De resto,
temos aqui um vasto chamamento à literatura clássica, uma vez mais, do
donjuanismo e não só, mas agora sob o ponto de vista hipercrítico de uma mulher
muitíssimo bem formada, e de todo sensível ao melhor e ao pior em qualquer um
de nós.
“Viveste – diz a narradora a dada altura, num momento de
auto-análise – na gaiola, mas não foste feliz. Viveste no pântano e não foste
livre. Foi o amor que fez a escolha sem ti? Qual amor? O que tu chamaste amor.
O teu pai chamou status para a sua rica filha. Ou para a sua filha rica? Faz
diferença a colocação do adjectivo. O que a tua mãe chamou ‘a ordem natural das
coisas’, o casamento com um cirurgião plástico, lindo de morrer, dizia ela, que
queria eu mais? Que importava que fosse vinte anos mais velho? Lindo de morrer.
Sim, de morrer a conta-gotas”.
A Mulher que Venceu Don Juan torna-se arte como o mais
determinado ajuste de contas, não necessariamente pessoal, mas sim com
destruições de vidas mais vastas, quase generalizadas. Não interessa se com
base numa vida vivida, conhecida entre outros, ou contada à mesa de um Café, ou
num quarto vazio de tudo e cheio de nada. É o retrato de toda uma sociedade que
sobressai aqui, é a espreita prolongada da pior das misérias por entre o luxo
adquirido quase sempre através do crime ou da manipulação dos mais fracos e
ingénuos, é a denúncia do que raramente chega a julgamento público, ou merece
sequer a censura de quem faz que não vê este outro inferno em todos os estratos
da sociedade. Teresa Martins Marques retira de toda esta fealdade – como alguém
já escreveu sobre um artista plástico – a mais pura beleza.
Teresa Martins Marques, A Mulher que Venceu Don Juan,
Lisboa, Âncora Editora, 2013.
Vamberto Henriques Ávila Freitas
Nasceu no dia 27 de
Fevereiro de 1951 nos Açores. Frequentou o Liceu Nacional de Angra do Heroísmo
e a Chino High School, Chino, Ca. Licenciou-se em 1974 em Estudos
Latino-Americanos e fez estudos de Pós-Graduação em Pedagogia e Literatura. É
presentemente leitor de Língua Inglesa e coordena o Suplemento Açoriano de
Cultura do Correio dos Açores. É também representante dos Açores no Conselho
Nacional de Opinião da RDP.
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