Teresa Martins Marques sabe contar a história, e sabe
recontá-la a partir de um ponto de vista vigorosamente novo.
Julieta Monginho
10:52 Sexta feira, 24 de Janeiro de 2014
Escolha o leitor uma larga tarde, como aquelas em que
deixávamos um filme por ver para ir ao facebook à procura do capítulo semanal
do folhetim. Venha o leitor masculino com o desconforto de quem entra em
terreno movediço. Sabendo de antemão que há-de ser uma mulher a vencedora do
confronto, o triunfo que lhe resta consiste em não se identificar com o vencido
Don Juan, o predador, aquele que destrói o outro para sobreviver ao combate que
trava consigo próprio e com a sua imagem, personificação de vários tipos que,
no seu grau mais virulento, se torna um "serial killer dos afectos",
nas palavras da narradora.
Nesta viagem de rigor e aventura, não tenha o leitor medo de
se marear, mesmo quando subir para uma embarcação ao sul. Há-de saltar da
beleza para o horror no mesmo parágrafo, tal como na vida. Há-de encontrar nas
paisagens deslumbrantes o palco dos actos mais atrozes. Contrastes, dicotomias:
entre força e fraqueza, entre realidade e aparência, entre liberdade e
escravidão. A autora sabe ao que vem, trata de definir os campos em confronto.
De um lado as personagens que sabem amar: Sara, a quem ao nascer todas as
graças foram dadas. Bela, rica, bondosa, culta e ingénua, caindo na rede de um
sedutor. Luís, o professor brilhante e ingénuo, também ele vítima de uma Doña
Juana. Lúcia, a psicóloga de passado misterioso, anjo da guarda das mulheres em
fuga. Manuela, a jovem que escapa à condição de vítima e se entrega ao estudo
do Diário do Sedutor, de Kierkegaard, defendendo uma tese, intitulada
"Retórica Amorosa de Don Juan. Sombras da Sedução", destinada a
entender a origem profunda do donjuanismo. Da qual, apesar da persistência da
dúvida filosófica, emerge uma ideia-força principal: Don Juan não ama as
mulheres que conquista em série, através da arte da palavra: Amaro, cirurgião
plástico, o mais odioso biltre; Joana, também ela fazendo vida da aparência, o
correspondente feminino de Don Juan, no que constitui uma das especificidades
mais interessantes do romance; Manaças, um
falhado, através de quem se
descrevem os métodos de sedução, num diálogo que evoca a conversa entre
Don Juan Tenorio e Don Luís, em Don Juan Tenorio, de Zorrilla (1844).
O amor romântico não se opõe ao amor erótico, antes o
integra como bênção fruída. O confronto dá-se com o amor assimétrico, baseado
em relações de poder, o que redunda na negação do próprio amor. Afirma-se, isso
sim, a crença na durabilidade da relação baseada no respeito, na liberdade, na
doação. Nas palavras da narradora "amar é um verbo transitivo". Um
verbo que pede um complemento, um alguém que é outro em si, prolongando a
alteridade no novo ente relacional. Uma nova entidade que, não sendo
simbiótica, transcende a mera soma aritmética. O amado integra-se neste novo
ser, proposto e esculpido pelo amor.
No ensinamento que a
autora nos deixa, um dos ingredientes do amor assimétrico, ou seja da negação do
amor, é a ausência de liberdade, por oposição à sua presença no amor
verdadeiro. Este preceito - só há amor em liberdade - é repetido ao longo do
texto como um refrão, uma ideia que Sara repete para não claudicar, que todas
as Saras devem pôr em prática para não perecerem. A liberdade e, acima de tudo,
a lucidez da liberdade, não pode sucumbir perante a ilusão do amor idealizado.
Esta afirmação de liberdade, contra as relações baseadas no domínio de um sobre
o outro, estende-se ao laço filial, o que liga Lúcia à sua filha Joana. A
autora aborda este laço por um ângulo pouco visitado na literatura, o da
inversão dos papéis tradicionais de autoridade e tirania, como se desta feita
fossem os filhos a engolir Cronos. De certo modo prolonga o questionar do instinto
maternal, na senda, por exemplo, de Elisabete Badinter, na sua obra
significativamente intitulada L'Amour en Plus, traduzido e publicado em
português com o título O Amor Incerto. Este romance assume o propósito do que
costuma chamar-se o empowerment da mulher, por oposição à sua nulificação. A
começar pelas companheiras da Casa Abrigo, cada uma delas com o seu dote
próprio, especialmente o de Maria para a cozinha, não importando a sua origem,
aliás heterogénea. Ao ler as passagens em que convivem, numa leveza
recém-adquirida, apetece-nos aplaudi-las, a elas e a quem, através das
associações que as apoiam, no caso deste livro a APAV. A diversidade de origens
das mulheres que habitam a Casa Abrigo serve à autora de pretexto, como tantos
outros, para viajar através da riqueza cultural do país, de Trás-os-Montes ao
Algarve, demonstrando que este território construído está inscrito num mapa
inapagável, que a crise morde, mas não vence.
Neste romance-ensaio
muito terá a aprender sobre o amor, mas também sobre história, arquitectura,
criminologia, sexo, música, gastronomia, língua dinamarquesa, pintura, cinema,
automóveis, psicoterapias e organização doméstica. O folhetim e o livro são
duas obras distintas, na estrutura, na consistência, no pacto narrativo. Ficou
também um romance cuja ligação a quem lê não se esgota no acto da leitura. Não
é Sara quem vence Amaro ou Luís quem vence Joana. No dia em que perdem o medo,
deixam, simplesmente, de os alimentar, libertando-se do jogo em que, pelo temor
e pela aceitação do sofrimento, tinham participado. Don Juan é vencido pela sua
própria incapacidade de escolher. A autora será uma das raras mulheres, que
ousaram abordar directamente a figura de Don Juan, aparecida em El Burlador de
Sevilla (1630), depois de Zorrilla, Cervantes, Goldoni, Lorenzo da Ponte - o
autor do libreto de Don Giovanni, a célebre ópera de Mozart - Balzac, Byron,
Pushkin, Dumas, Baudelaire, António Patrício, Saramago, Almeida Faria. E todo o
resto da vasta bibliografia oferecida pelo texto. "Vês, vês, eu também sei
contar a história", diz Sara à criada/ama, no doce tempo da infância. Sim,
Teresa Martins Marques sabe contar a história, e sabe recontá-la a partir de um
ponto de vista vigorosamente novo.
Ler mais: http://visao.sapo.pt/a-mulher-que-venceu-don-juan=f766249#ixzz2yo3Rh0Hl
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