A MULHER QUE VENCEU DON JUAN
Romance
Autora: Teresa Martins Marques
Âncora Editora
Lisboa, 2013
Capítulo 1
LA DONNA È MOBILE
Saudades, só tenho do mar. Da vista do mar da Foz. Por mais que pense que o
Atlântico é o mesmo, este que vejo aqui da janela do Monte da Caparica não o
sinto como meu. A Foz era outra coisa.
A Foz era outra coisa, vista daquela casa nova, que no último ano me
preencheu os dias a correr lojas à procura do bibelot exacto para o ângulo
exacto. Por mais que corresse, por mais que me esfalfasse, nunca encontraria
nada que ficasse ao gosto do Amaro. Lindo, mas… Ele, sim, sabia escolher. Ou
achava que sabia. Nunca nada era perfeito, a não ser o trabalho que lhe saía
das mãos exactas de cirurgião plástico.
Sempre tive o gosto do pormenor, talvez como fuga ao essencial, ao que na
verdade me perturba. Sempre precisei de um derivativo, cada um constrói o
alívio como pode. Neste momento, penso nas plantas da minha varanda, secas,
mirradas da falta das minhas conversas com elas. Tenho saudades da varanda. Não
propriamente da casa larga, onde me perdia, branca e asséptica, linda de
morrer, como dizia a Becas, linda de morrer, dizia eu, de morte lenta, sem
esperança de mudar de vida. Ela não podia entender-me. Eu não podia
explicar-me.
Para a casa nova da Foz não fui ouvida nem achada. A minha existência era a
mesma de um bibelot. Servia para enfeitar a vida dele, sem voz activa, fosse
para o que fosse, a não ser para as assinaturas. Um dia, o meu marido chegou a
casa e ao jantar disparou:
−Amanhã, esteja pronta às onze horas, é preciso ir ao notário assinar a
escritura do apartamento novo.
Tinha falado vagamente num edifício, na Avenida Marechal Gomes da Costa,
que ficara embargado por um tempo, mas que finalmente tinha sido construído. Comprou-o
com o dinheiro herdado da minha família, e nem sequer me pediu para o
acompanhar na visita ao andar modelo. Apresentou o caso consumado. Não posso
contar isto a ninguém. Se contasse, ninguém acreditaria. Ou então seria julgada
ainda mais insensata do que na realidade fui. Por isso escrevo este Diário, que
não me questiona nem censura. Já bem me basta a censura que a mim mesma faço,
porque hoje sei que a culpa também foi minha, muito minha, por ter sido fraca.
A paixão cegou-me.
Como havia eu de imaginar, nos meus dezassete anos adolescentes, que o
Adónis, aparecido, como num filme de efeitos especiais, naquele Verão, na Praia
da Granja, se transformaria num demónio? E, todavia, estava na cara. Homem
demasiado educado, demasiado cerebral, demasiado contido, com demasiados
salamaleques, não é de confiança. As pessoas normais não são demasiado coisa
nenhuma. Perfeição a mais nem Ulisses a quis e deixou Calypso a chorar-lhe a
partida em Ogígia. Penélope era paciente, serviria melhor os seus intentos. Outras
teias, outras malhas em que também ela se enredou, mas a minha odisseia é de
outra natureza, sem deuses nem heróis que me valham.
A mamã adorava o doutor-do-beija-mão. Sarinha, homem fino, educado como
este, não conheço outro. Uma linda carreira de cirurgião plástico pela frente.
Tu precisas de alguém que tome conta de ti, quando te faltarmos. Não foi
preciso repeti-lo muitas vezes. O Amaro, nesse tempo, era o charme em pessoa e
os olhos gulosos das minhas amigas confirmavam a versão da mamã. Supersticiosa,
nunca pronunciava o verbo morrer, foi a primeira a dar entrada no Cemitério de
São Dinis, em Vila Real, e lá está no jazigo da família, mesmo ao lado da
Virgínia Rosa Teixeira, a célebre quiromante que ficou conhecida como Madame
Brouillard, em cujo consultório da Rua Nova do Carmo, em Lisboa, uma ilustre
clientela do tempo da monarquia a procurava, até mesmo o ministro João Franco,
que ainda assim não conseguiu prever o assassinato de D. Carlos.
Logo após o funeral de meu pai, Amaro tomou conta de tudo. A Clínica
estética era rendosa, porém, dizia, dinheiro não ocupa lugar e virava o
provérbio da sabedoria em seu proveito. Sempre achei estranho que nunca me
tivesse apresentado à família, que inculcava vagamente aristocrática. Os pais
tinham problemas de saúde, assim dizia, não vieram ao casamento, viviam muito
longe, em Buenos Aires. Ouvi-lhe tanta mentira ao longo dos anos, que esta será
mais uma léria e, se ainda forem vivos, devem ter sido abandonados pelo seu
rico menino.
Sempre achei estranho não querer ter filhos. Nunca me apresentou uma razão
válida para os não ter. Nos primeiros anos não se colocava a questão, por eu
ser muito nova. Chegada aos trinta, não tive dúvidas de que a razão deveria ser
outra. Argumentava que eu era a montra da Clínica, que não podia estragar o
físico. Ora essa! Todos os dias via actrizes e modelos lindíssimas a perderem
quilos da gravidez da noite para o dia. Sim, o motivo só podia ser outro e até
hoje não descortinei qual fosse.
− Sara, não se esqueça de tomar a pílula.
E ele quase a enfiava pela boca abaixo, vigiando rigorosamente o blister.
Farta de o ouvir e de não o entender, quando a Isa ficou grávida do terceiro,
fiquei cheia de pena de mim, e decidi que era a minha última oportunidade. Com
quase quarenta e cinco anos, não seriam já pequenos os riscos. Desses,
confesso, tinha receio, embora a Drª Raquel me tivesse garantido que eram
mínimos. Não tentei antes, porque ainda tinha esperança de sair de casa, de ir
viver com o Alberto, mas ele não quis ou não conseguiu decidir-se, sei lá eu as
razões que levam as pessoas a adiarem em definitivo as escolhas difíceis.
Então, passou-me pela cabeça que ter a criança é que era importante e,
mesmo que o pai fosse o Amaro, talvez me fizesse sublimar a perda do Alberto.
Acho que foi isso que a Drª Lúcia disse. Engravidei para sublimar a perda.
Sempre vigiada, decidi fingir tomar a pílula, deixá-la debaixo da língua e
deitá-la fora depois. Tinha tomado um antibiótico havia pouco tempo e sempre
seria uma desculpa de ela não ter surtido efeito. Perante o facto consumado,
Amaro não teria alternativa. Fosse como fosse, não poderia esconder o segredo
por muito tempo.
Numa sexta-feira, ao jantar, comunicou-me que iríamos passar o
fim-de-semana a Lisboa. Tinha mandado reservar bilhetes para o São Carlos.
Queria ouvir o Renato Bruson, no Rigoletto, o melhor barítono desde Tito Gobbi,
dizia ele, que eu de ópera percebo pouco, mas interessam-me as histórias.
Sempre tive muita pena de Gilda, pobre menina que morre apaixonada pelo Duque de
Mântua, um patife mulherengo que, do alto da sua desfaçatez, exclama: “La donna
è mobile… qual piuma al vento,… muta d’accento… e di pensiero…” Sim, eles
vêem-se ao espelho do que pensam das mulheres, esses “cortigiani, vil razza
dannata” As ingénuas como Gilda e como eu, bem poderíamos dizer: “È sempre
misero … chi a lei s’affida…” Mas não dizemos, ou dizemos demasiado tarde.
Tinha de arranjar coragem para lhe contar que estava grávida. Pareceu-me
que longe de casa seria mais fácil evitar uma cena operática. Foi tudo ao
contrário.
Depois de sairmos do São Carlos, o Amaro informou que tínhamos mesa
reservada no Olivier da Rua do Alecrim. Lembro os coxins azuis e rosa, atados
atrás com rendas e fitas de seda, recriando um ambiente parisiense do século
XVIII. Lembro as gaiolas douradas com vela dentro, cobertas de flores, que me
pareceram a melhor imagem da minha vida. Lembro dois sóis negros na parede do
fundo, o Amaro cruel e o Alberto desistente, no meio deles um terceiro foco
luminoso, o meu filho.
Ele tinha escolhido um misto de cinco entradas amuse bouche. Eu bebia água,
ele um Quinta do Mouro, Cabernet Sauvignon. Quando pediu um sorbet com vodka,
arrisquei:
− Amaro, tenho de lhe dizer uma coisa.
Mal levantou a cabeça, e a colher continuou o seu caminho para a boca.
– Estou grávida.
A colher caiu de chofre na taça. Fez um olhar como o do Rigoletto, quando
pronunciou a palavra “Maledizione !” Ficou por uns segundos calado e depois,
sem o mais leve sinal de emoção:
– Vamos tratar disso amanhã.
– Tratar do quê?
– Da IVG.
– Mas eu não quero abortar.Quero ter este filho!
– Você faz o que eu lhe mandar fazer.
– Já é tarde para abortar.
– Quem decide isso sou eu. Conhece as regras do jogo há muito tempo.
Chamou o empregado, estendeu o cartão dourado, deu um principesco
pourboire, pegou no telemóvel, ligou ao Joaquim para trazer o carro, e
seguimos, sem dizer mais palavra, para o Pestana Palace, na Rua Jau. Também eu
era serva, mas o meu amo estava longe de ser um Príncipe das Letras, ou de
qualquer outra coisa. Entrou directamente no quarto dele, com porta de
comunicação para o meu, e não disse palavra, nem sequer boa noite.
Durante a viagem de regresso ao Porto, dirigiu meia dúzia de frases ao
Joaquim, comunicando-lhe os serviços da semana. Comigo, o mais profundo
silêncio. O Joaquim espreitava, a medo, pelo retrovisor e via a minha cara de
angústia, os olhos molhados. Viagem inesquecível, falava para dentro com o meu
filho, logo que nascesse sairíamos de casa. Teria finalmente uma razão para
viver. Na segunda-feira, ao pequeno-almoço, encontrei na mesa da sala de jantar
um bilhete:
“Almoço marcado em casa do Dória, às 13 horas. Avisei o Joaquim para a
levar à Clínica às 12 e 30 e saímos directamente de lá.”
Como um autómato, segui as instruções. Quando entrei no carro, o Joaquim
não resistiu:
– Estou muito preocupado com a minha senhora. Está muito abatida, ontem vi
que veio a chorar todo o caminho. Só quero que saiba que eu estou aqui, se
precisar de ajuda. Seja para o que for. E acentuava para o que for. Não percebi
nada. Nunca o Joaquim me tinha dirigido tantas palavras seguidas. Agradeci e
disfarcei a lágrima indiscreta que queria estragar-me o rímel, pecado que Amaro
jamais perdoaria à sua mulher-montra.
Chegámos ao Paradiso, a vivenda cor-de-rosa, agora Clínica, que conservava
a cor do tempo da tia Eufrosina. No átrio, ao fundo da larga escadaria de
madeira, lá estava a reprodução das «Três Graças» de Antonio Canova, por cujo
original a tia se apaixonara ao vê-lo no 1º andar do Hermitage. O tio Lourenço,
por sua vez, admirava o conjunto escultórico de Cupido e Psyché, revia-se no
papel da alada criatura a dar um eterno beijo à menina, mas a tia Eufrosina,
que não, que não gostava daquele pernilongo, com asas grandes de mais. Psyché
não estava mal de todo, porém não se comparava à beleza das três Graças.
Casadinhos de fresco, iam estrear a vivenda que tinham mandado construir na
Foz. O tio, muito apaixonado, tudo fazia para agradar à sua deusa Eufrosina. Mal
chegou ao Porto tratou de encontrar um escultor que lhe fizesse a reprodução de
Aglaia, Tália e Eufrosina. Dizia ele que, não podendo casar com as três,
escolhia a irmã melhor, e contentava-se a olhar para as outras duas.
Colocara-as à entrada para lhe darem as boas-vindas. Uma sorte Amaro não ter
embirrado com elas e não as ter mandado para o jardim ao relento. Ao contrário,
parecia apreciá-las muito. Dizia que as mulheres saídas das suas mãos eram a
viva cópia das Três Graças. Desgraça, ali, só mesmo a minha.
Entrámos no jardim, o Joaquim lançou-me um olhar preocupado e saí do carro.
Estranhei que ele desse a volta em direcção à saída, afinal precisaríamos dele
para ir a casa do Dória. Abri a porta do consultório. Vazio. Amaro que não
devia estar longe, tinha deixado o computador ligado. Da janela via o jardim, a
velha cameleira e eu a subir pelo tronco acima, a tia Eufrosina a ralhar,
Sarinha desça já daí, antes que caia e parta uma perna, vai estragar as férias.
Isso sim, é que era uma desgraça. Senti que alguém abria a porta, Amaro vinha
acompanhado de uma mulher muito loira que nunca antes ali vira, alguma
enfermeira nova, ele tinha o cuidado de renovar, com frequência, o stock de
beldades da Clínica. Lembro a mão dela, ágil, na minha boca, um algodão, um
trapo, não sei, um cheiro acre, um movimento oscilante, na parede um bicho da
Paula Rego a mover-se dentro do quadro, um estranho vaivém de barco, mais nada.
Comecei a acordar. Um gosto amargo na boca. Estava numa sala estranha,
talvez um laboratório, provetas, frascos, armários, tudo branco, muito branco.
Eu ali deitada numa cama estreita, vestida com um albornoz. Na brancura do
tecido uma estranha mancha acastanhada. Tentei levantar-me, sentia-me pregada à
cama, inúteis, as pernas tremiam. Chamei, ninguém respondeu. Não sei quanto
tempo depois, entrou uma mulher-girassol, devia ser a mesma que eu vira com
Amaro, não podia jurar, a minha cabeça rodopiava, o laboratório rodava sem
parar. Tirem-me daqui! E, de muito longe, ouvia a minha voz em eco, aqui, aqui…
− Acordou, vai dormir outra vez, é preciso dormir, dizia o girassol
falante. Logo depois, pareceu-me ver o Amaro de seringa na mão, eu perguntava o
que é que aconteceu, empurrei-lhe o braço, a seringa caiu. A mulher a
segurar-me e eu a esbracejar. O meu marido deu a volta, afivelou dois pares de
correias que apareceram de cada lado da cama. Senti uma picada no braço, as
mãos presas, e mais nada. Quanto tempo estive ali, não sei. Também não sabia se
era dia ou se era noite, a luz pálida não permitia distinguir. Lembro-me de ver
uma aranha gigante a caminhar no tecto branco, ai que vai cair em cima de mim.
Mais nada.
Devo ter dormido várias horas seguidas. Uma voz repetia baixinho − minha
senhora −, abri a custo os olhos, era o Joaquim. O que estaria ali a fazer o
Joaquim, santo Deus? Além de chauffeur era o guarda-nocturno da Clínica
Paradiso. Dormia no pavilhão ao fundo do jardim, uma pequena construção que
vinha ainda do tempo da tia Eufrosina e servia agora de armazém da Clínica.
− Minha senhora, não tenha medo, sou eu. E arrancava-me a agulha do soro do
pulso. Sonolenta, senti que me levantava em braços, pareceu-me subir degraus, a
cara encostada ao pescoço do Joaquim, peso morto às suas costas. Era ainda
noite. Encontro-me agora dentro do carro, atravessamos a cidade, mais longe,
cada vez mais longe ruelas e azinhagas, a cabeça zonza, o olhar turvo. Não
lembro mais nada.
Acordei de manhã numa casa estranha, pobre, num sítio desconhecido. A porta
entreabriu-se, o Joaquim apareceu, logo depois uma mulher idosa entrava com uma
chávena de leite na mão.
− É a minha mãe − disse o Joaquim − não tenha medo. Beba, vai fazer-lhe
bem.
− Minha Nossa Senhora dos Aflitos − disse a velhinha, olhando para os
vergões nos pulsos, com restos de sangue. Já de esponja húmida na mão,
preparava-se para esfregar, o Joaquim não deixou.
− Deixe estar assim, mãe, a polícia tem de ver isto. Ora o traste, o grande
sacana. E falava sozinho, com cara de poucos amigos e tartamudeava − não fica
assim, não…
Dormi o resto do dia, engoli a custo o caldo, que a mãe do Joaquim me deu
na boca, e só então me lembrei outra vez do bebé, era preciso comer por causa
dele. Quase ao fim da tarde, o Joaquim voltou:
− Agora, vamos à esquadra da Foz. A minha senhora tem de ir lá contar tudo,
dizia com voz alterada.
− Digo o quê, Joaquim?
− Diz que o Dr. Amaro a teve presa na cave.
− Na cave? Qual cave?
− Na cave da Clínica.
− Eu nem sabia que a Clínica também funcionava na cave.
− Oh, se funciona − disse ele, entre dentes− a minha senhora vai dizer que
o seu marido a teve lá presa, amarrada, que a drogaram.
− Drogaram-me? Então foi isso, eu dormia, via bichos nas paredes, uma
aranha prestes a despenhar-se sobre mim, uma sede ardente.
− Drogaram-na e fizeram-lhe muito mal.
− O que é que me fizeram? − E o medo saía em cada sílaba da voz.
O Joaquim rondava dia e noite pela Clínica, conhecia quem entrava e quem
saía, estava na posse de muitos segredos.
− O seu marido e aquela filha da puta da fazedora de anjos.
Um calafrio percorreu-me a espinha. Senti um nó no estômago, levei
instintivamente as mãos à barriga − o meu filho, mataram o meu filho?
− Fizeram-lhe um desmancho, aqueles cabrões! Aqueles grandes cabrões de
merda! E a voz do Joaquim ressumava ódio.
Senti a cabeça a andar à roda, a cama a girar, o tecto a rodopiar, agora é
que é o fim, pensei.
− Ai minha Nossa Senhora nos acuda, que ainda nos morre aqui! − clamava a
mãe do Joaquim. Ele aproximou-se, sentou-se ao meu lado, segurou-me na mão,
encostou a minha cabeça ao seu peito e dizia agora baixinho:
− Chore, minha rica senhora, chore tudo o que tem de chorar. Deite cá para
fora esse negrume.
A mãe do Joaquim olhava estarrecida e era agora ela a dar voz à ladainha de
imprecações:
− Ora uma destas! O alma do diabo! É o demo, o demo em figura de gente!
Quem havia de dizer, um homem tão bem apessoado. Vêem-se caras, não se vêem
corações.
O Joaquim ajudou-me a levantar da cama − vamos lá, vamos lá, tem de ser.
Saiu, ficou do lado de fora do quarto, enquanto a velhinha me despia o
albornoz que trazia ainda vestido. Num gesto de raiva e nojo atirou com ele
para um canto e pegou no saco onde o Joaquim tinha enfiado à pressa a minha
roupa e a carteira de pele de crocodilo, que por sorte ainda estava numa cadeira,
na cave da Clínica. A minha mão tremia, a velhinha ajudou-me a apertar os
botões da blusa amarrotada, passou uma toalha molhada pela minha cara de cera,
penteou os meus cabelos desgrenhados, disse − coitada!− quando viu as nódoas
negras. Finalmente chamou o Joaquim:
− A senhora está pronta, podem ir. Que Nossa Senhora dos Aflitos a ajude,
cá fico a rezar por vocemecê, que bem precisa − dizia, de lágrimas nos olhos.
− Vamos, Joaquim, agora é que é. Vou denunciá-lo por tudo o que me tem
feito toda a vida. O que ele fez não tem perdão.
Senti um abalo e um alívio. Alguma coisa muito forte começava a mudar em
mim. As antigas lágrimas de medo eram agora de raiva. Uma sensação de calor,
uma estranha onda de coragem subia-me no peito. Se o meu marido tivesse aparecido
naquele momento à minha frente, e eu tivesse uma pistola na mão, desfechava-lhe
um tiro bem no centro da testa, para que daquela cara não sobrasse nada.
− Vamos, Joaquim. Virei-me para a mãe dele e abracei-a:
− Ainda hei-de vir agradecer-lhes tudo o que estão a fazer por mim.
A velhota limpou uma lágrima ao avental, o Joaquim virou a cara para o
lado. Escondia os olhos toldados.
− Vamos, Joaquim.
Estacionou o carro nas traseiras da Esquadra. Amparou os meus passos
nervosos e, como um fiel cão de guarda, ficou fora da porta, durante o tempo em
que estive no gabinete do comissário Paulo. Depois, o polícia mandou-o entrar e
confirmou de onde eu vinha e o que ele tinha visto e ouvido. Deixou-lhe o nome
e a morada da mãe para o mais que fosse preciso.
− Sr. comissário, chamo-me Sara Dornelas Fróis, quero apresentar queixa
contra o meu marido, o Dr. Amaro Fróis, médico, director da Clínica Paradiso,
por agressões físicas e violação continuada ao longo de vinte e oito anos.
O comissário Paulo fez um ar de espanto. Reconheceu a senhora elegantemente
vestida, com a cara cheia de hematomas e marcas de sangue nos pulsos. Era
realmente a esposa do Dr. Amaro Fróis, médico muito conhecido e respeitado na
cidade do Porto. Ficou estupefacto. Daquele nunca poderia suspeitar. Tão
elegante, tão fino de maneiras. Vinte anos de prática na polícia tinham-no
habituado a estas situações. De onde não se espera é que elas vêm.
Sara esteve mais de duas horas no gabinete do comissário. O que este ouviu
era de tal ordem gravoso que ali mesmo telefonou à directora da APAV, sabendo
da viabilidade de a mandar seguir de imediato para Lisboa. Se ficasse no Porto,
o marido iria encontrá-la. Era preciso escondê-la e depressa. Sara seria uma
testemunha preciosa.
As investigações prosseguiam e, se tudo o que contou viesse a confirmar-se,
um grande escândalo explodiria na pacatez da Invicta .
Antes de entrar no carro do agente que me trouxe aqui para esta casa do
Monte da Caparica, abracei o Joaquim com toda a força dos meus fracos braços,
beijei-o em cada uma das faces, disse-lhe obrigada do fundo da minha alma e
perguntei-lhe:
− E agora, Joaquim, o que vai dizer ao seu patrão?
− Nada, minha senhora. Não digo nada. Deixo-lhe o carro estacionado na
garagem da Clínica e aquele filho da puta, com sua licença, nunca mais me bota
a vista em cima. — com Teresa Martins Marques e 2 outras pessoas em Foto: Poema
de António Ferro, dedicado ao livro "A Mulher que Venceu Don Juan”, de
Teresa Martins Marques
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