12/08/2019

O AVESSO DO AMOR Teresa Martins Marques

 Lausanne, manhã de Outono.  O comboio pára na Station Ouchy. Uma jovem mulher sai da carruagem, olha de relance o relógio, cinco minutos para as sete, já está atrasada, corre para a saída. Passo apressado, vira à esquerda, atravessa a praça, em frente o Château d’Ouchy, vira novamente à esquerda. Envolto numa cortina de névoa, o Beau Rivage Palace mostra o esplendor da Belle Époque, há cento e cinquenta e sete anos, pela mão de La Harpe e Bertolini.  A jovem entra por uma porta das traseiras, nem sente o frio ao mudar de roupa, já aprumada no seu uniforme de femme de chambre.
Bonjour, Madame, je m’excuse.
 Vite, vite, allez-y! A chefe do pessoal faz um gesto brusco, cara de poucos amigos. Dois minutos atrasada, é como se faltasse ao emprego sem avisar!
Meu Deus, tão cedo e os clientes já a pé! Se eu fosse rica, havia de me levantar bem tarde! Ao longo do santo dia, Rita e as outras empregadas deixam o edifício a brilhar. Nem um grãozinho de pó. Cento e sessenta e nove quartos, trinta e três suites grand luxe. A sua preferida é a Lavaux- toit terrasse, vista magnífica sobre o parque, o Lac Léman, os Alpes. Quando ainda vivia na sua casita pobre da Covilhã e olhava lá longe os píncaros da serra da Estrela, pensava que o mundo não podia ser mais alto. Disse-o à Madame Dubois, casa chique em Rumine, o seu primeiro emprego de mulher-a-dias, na Suíça. A patroa sorriu. Era tão boa a Madame! Bem pena tem de a ter deixado, mas o Zé não gostava da pinta do Monsieur…
 Tu julgas que eu sou parvo, mulher? O que ele quer bem eu sei!
Rita manejava rápida o aspirador e os pensamentos. Não descansou, enquanto não me despedi.  Um castigo, aturar o Zé.  Com vinho ainda pior. Sempre a chatear, a remocar, um castigo! Não posso pôr os olhos em ninguém na rua, lá vem ele com a ladainha:
 Estavas a olhar para aquele?  Não tens vergonha? O que é que queres?
Não quero nada, Zé! Bem sabes que só te quero a ti! Prometi ao padre e vou cumprir a lei de Deus.
 Deus te livre que não cumpras!  Se te apanho em falso, mato-te! Ou julgas que não? Eu não chego para ti?
Oh Zé! Chegas e sobras! Deixa-te dessas conversas ruins! Eu sou uma mulher séria!
 Eu sei lá! Todo o dia rodeada de ricaços.   Tiens! la petite Rita…
 Santa Maria me valha! Se me chamam é porque precisam de alguma coisa!
 Pois precisam, precisam… Oh rapariga, antes fosses feia como um bode! Antes metesses medo ao susto!
E tu casavas comigo, se eu metesse medo ao susto?
Vamos mas é fazer um crianço para te entreteres…
Pois achas que tenho pouco trabalho? Que ainda preciso de um garoto agarrado à minha saia?
Não sei, não. Mas todos têm filhos e governam-se!
Governam-se mal! Tu não sabes o preço das creches? Achas que temos dinheiro para creches?
Qual creche? Ficavas em casa a cuidar do garoto, que é o que fazem as mulheres sérias!
 Que não precisam de trabalhar, como eu. Só tenho vinte e cinco anos, temos tempo.
Não sei, não…  Olha o lindo serviço da Sofia. Era fresca, era!
Deixa a minha irmã em paz!  Que mal te fez a Sofia?  Calou-se, sorumbático. Qualquer referência à minha irmã deixava-o transtornado.
Não quero nem ouvir falar de filhos!  Não sei se estou para aturar isto muito tempo, pensei com os meus botões, Deus me livre de dizer tal coisa, em voz alta, era um Deus nos acuda!   O Zé é bom homem, mas estou farta dos ciúmes dele. Cada dia mais farta! Ou é o Monsieur Dubois, ou o homem do supermercado, ou o desconhecido que vai na rua. Valha-me Deus!
Dou comigo a pensar no dia do nosso casamento. Devia ter sido o dia mais lindo da minha vida, mas que não foi.  Namorámos quase um ano. Ainda és virgem, Rita? E eu disse que sim.
 O meu pai tinha avisado:  não quero poucas-vergonhas cá em casa! Se vos vejo atravessadas, corro-vos a pontapé e à cinturada.  A minha irmã Sofia não fez caso e fez ela bem, porque morreu naquele maldito desastre, quando regressava a casa logo no dia do meu casamento. Meteu-se no carro e foi pela ribanceira abaixo.
Nem quero lembrar-me. Um pesadelo.  Quando veio o resultado da autópsia foi a surpresa geral - a Sofia estava grávida! Houve quem dissesse que se tinha matado para esconder… Rita não acreditou na patranha. E o casamento ficou para sempre ensombrado pela morte da irmã.
  O copo-d’água era modesto, as posses do meu pobre pai carpinteiro não davam para mais.  Os convidados levaram alguns presentes para a casa que já começámos a fazer em Tortosendo, na terra do Zé. O senhor padre fez um bonito sermão, não separe o homem o que Deus uniu. O bailarico estava animado, mas nem com os primos dancei. O Zé avisou de véspera, a minha mulher só dança com o marido.  De vez em quando vinha-me à ideia - como é que será aquilo? Perguntei à minha mãe - dói um bocado, mas passa logo. Temos de ter paciência, filha. Fomos passar a noite ao Hotel de Turismo da Guarda, presente do meu padrinho de baptismo, o Dr. Vasconcelos, da Farmácia Central.  O Zé, mal entrou no quarto - despe-te! Mal tive tempo de me descalçar. Agora é que vamos ver se és virgem ou não! Eu disse-te que era! Não acreditas? Já vamos ver… Atirou-se para cima de mim, parecia um leão esfaimado. Dei um grito. Porra, não mentiste! Pouco depois, virou as costas. Chorei baixinho.  Não viu as minhas lágrimas de sangue. A sua primeira  noite foi o avesso do amor.
 Rita era a mais velha, e a mais calada. Sofia era um azougue que punha a cabeça dos homens num virote. O Zé, típico machão, queria sol na eira e chuva no nabal. A Rita, mais sossegada, era mulher para casar, mas a Sofia é que lhe dava a volta ao miolo. Rondava-a sorrateiro e fazia-lhe olhinhos cada vez que se encontravam sozinhos.
Atão, rapariga, agora quase que já somos da família, tu andas com quem calha, que mal é que faz?
 Eu não ando com quem calha! Sai-me da frente, canalha! Tu julgas que era capaz de pôr os palitos à minha própria irmã? Sai-me da frente, alma do diabo!
Quanto mais o afastava, mais o Zé se babava atrás da quase cunhada, mulher atrevida, não se podia casar com ela, pensava o machão. Num fim de tarde de Verão, andava a Sofia a regar a horta, não se via vivalma pelas redondezas e o Zé aparece-lhe como uma assombração. Agarra-a pelos ombros, tapa-lhe a boca, atira-a ao chão com a sua força bruta de touro bravo. A rapariga esbraceja, mas não consegue livrar-se do mostrengo.
Se disseres alguma coisa à tua irmã, vais pagá-las caras! Sofia chegou a casa transtornada e limitou-se a dizer à irmã que o Zé não era boa peça, que fazia mal em casar com ele, ainda estava a tempo.
 Rita estava embeiçada por ele desde a escola primária, fez ouvidos moucos e o casamento seguiu em frente.  Agora na Suíça, longe dos pais, pensava muito na irmã morta.  Bem me dizia ela que não casasse com ele!  Que segredos ruins saberia que não me contou?
A verdade é coxa, mas sempre chega ao destino. Numa noite de insónia, Rita começou a ouvir o marido a tartamudear durante o sono.    Sof… So…fia…
Sofia? Ele estará a sonhar com a Sofia? Rita sentou-se na cama e pôs o ouvido à escuta quase em cima da boca do marido.
Sofia… malvada… ai! pagas pagas… Está quieta, que ainda levas!
Não havia dúvida, ele falava com a Sofia a dormir.  Passou a ficar acordada a ver se ele voltava a falar.  Percebeu que falava sobretudo quando bebia ao jantar e passou a encher-lhe ainda mais o copo.
Até que, numa noite, Rita ouviu clarinho como a água:
 Sofia, minha alma danada! Voltava a matar-te, sua puta reles! Anda cá, que te mato outra vez!...
Rita não pregou olho no resto da noite. Fez-se claro na sua cabeça. Foi o Zé que lhe fez alguma! Seria ele o pai do filho da irmã?  Só pode ter sido ele, o filho da puta! Casei-me com o assassino da minha irmã!  O mundo desabou sobre a cabeça da pobre rapariga.
Mal amanheceu, telefonou para Portugal, mandou a mãe chamar o pai ao telefone.
Não estás boa da cabeça, filha! Isso pode lá ser!  Ele é bruto, mas não é criminoso!  Aquilo foi acidente e pronto. Deus guarde a alma da pobrezinha!
Por favor, pai, vá falar com a polícia, dê-me o telefone da esquadra da Guarda, que eu mesma telefono! Chorava e engolia as lágrimas. Tanta zanga, tanto remoque, tanto ciúme e afinal é um criminoso! O que é que ele lhe terá feito?  Sofia estava grávida numa altura em que não se lhe conhecia namorado.  Rita começou a tecer uma teia ruim na sua cabeça.
O comissário da esquadra da Guarda ouviu tudo atentamente. O carro da Sofia ainda estava debaixo do telheiro, no curral da casa dos pais, coberto de giestas e tojos para onde o levaram a seguir ao acidente, puxado pelo carro de bois. Nunca ninguém suspeitou de crime. A Sofia tinha bebido um copito a mais no copo-d’água e foi pela ribanceira abaixo. A mãe mandou rezar um trintário de missas pela alma e vestiu-se de luto para sempre.
No dia seguinte, o comissário apresentou-se na casa dos pais de Rita para vistoriar o carro. Sim, senhores!  Ora uma destas! O carro tinha os travões cortados!  Recolheram as impressões digitais. Uma sorte o carro estar resguardado e não ter apanhado chuva!
 O resultado foi o que a Rita esperava. As impressões digitais eram as do seu homem! As do assassino da irmã!
 Já preso na cadeia da Guarda confessou, escarninho:
 Teve o que merecia, aquela puta! Andava a pavonear-se com saia de palmo, a entornar as mamas para fora da blusa!  Um homem não é de ferro, a culpa foi dela!
 Vais apodrecer no inferno, assassino!  E cuspiu-lhe na cara.  Foi a última vez que o viu.
Sete horas da manhã. Rita, em passo ligeiro, entra no Beau Rivage Palace.   A neblina começa a desfazer-se. Não tarda vem aí um belo dia de sol.