20/09/2020

Do «amor confluente» Ernesto Rodrigues

 «Saudades, só tenho do mar.» Limiar, esta frase marca um novo tempo de quem enuncia, reforçado na cisão do advérbio. Não se percebe ainda por inteiro a rasura do passado, nem que, sob no me suposto, a Sarinha de outrora se vê protagonista de drama que, aos 45 anos, lhe transtorna existência passiva, trazendo-a à vida. A toada evocativa da primeira página, assente na repetição vocabular e frásica, reitera a distância entre o mar vivo da Foz, única memória feliz, e o mar triste do Monte da Caparica; mas este é refúgio, quando se toma, finalmente, em mãos o destino, à deriva desde os 17 anos, ao cegar na paixão por bem mais velho, bonitão e todo salamaleques, cirurgião plástico. Decorrem 28 anos nas mãos deste, que lhe toma alma, fortuna e, no chão da infância, montou a Clínica Paradiso, onde vai destruí-la. Ironia. Entre um ser possessivo e mulher-bibelot a quebrar amarras conta-se esta venturosa estreia de largo fôlego.

Romance de acção que percorre a geografia nacional e ainda salta a América latina salvífica, quero vê-lo, me suposto, a Sarinha de outrora se vê protagonista de drama que, aos 45 anos, lhe transtorna existência passiva, trazendo-a à vida. A toada evocativa da primeira página, assente na repetição vocabular e frásica, reitera a distância entre o mar vivo da Foz, única memória feliz, e o mar triste do Monte da Caparica; mas este é refúgio, quando se toma, finalmente, em mãos o destino, à deriva desde os 17 anos, ao cegar na paixão por bem mais velho, bonitão e todo salamaleques, cirurgião plástico. Decorrem 28 anos nas mãos deste, que lhe toma alma, fortuna e, no chão da infância, montou a Clínica Paradiso, onde vai destruí-la. Ironia. Entre um ser possessivo e mulher-bibelot a quebrar amarras conta-se esta venturosa estreia de largo fôlego.

Romance de acção que percorre a geografia nacional e ainda salta a América latina salvífica, quero vê-lo, sobretudo, como de personagens, na definição que nenhum outro contemporâneo labora tão densamente. Em fundo, questões vitais: infâncias traumáticas e seus efeitos sobre próximos; como sentir-se inferior descamba em rivalidade sem sentido; e, na psicografia do sedutor, segundo bibliografia nem sempre convocada pelos especialistas, uma pergunta inquietante: não será Don Juan um homossexual que se desconhece, ou prolonga a infelicidade, quando seria mais útil assumir-se? 

Aspecto igualmente marcante, recuperado no policial que também é, a espaços, este enredo de encaixes perfeitos familiariza-nos com personagens secundárias: o pathos cruel e desencadeador que inaugura é resolvido por motorista e velha mãe protectora (a seu tempo, recompensados), e será outra dupla mãe e filho a decidir, no final, a sorte de quem, vingativo – gélido, mandão, tecedor de anjos –, promove a acção. A emergência destas figuras de segunda linha é mais do que um topos de folhetim saído no Facebook (2012-2013), com episódios entretanto revistos e acrescentados em livro (2013): vivem na periferia, também da linguagem, mas trazem calor às relações, nessa ternura dos que menos têm, mas são mais.

Na alternância de registos – discursivos, literários, filosóficos, topográficos… –, vemos como se vai fazendo mão lesta de artista na conjugação entre primeira e terceira pessoas, e suas conexões a diálogos vivos e variados entre enunciação directa, indirecta e indirecta livre, mas como, simultaneamente, Sara e sua máscara Esmeralda (abismando-se, nesta, a própria literatura, em alusão hugoliana) multiplicam contactos, e novos quadros sociais e linguísticos se nos entreabrem. O também duplo processo de olhar em frente, avançando no presente da narrativa, e servir-se do flashback, para melhor compreender gestos futuros, vai conduzir-nos da infância inconsciente aos erros do casamento, da vontade de libertação e autonomia a novas relações pacificadoras. Ao experimentar a pobreza, Sara cria solidariedades; a injustiça, mais viva no melindre da idade, encaminha sujeito sensível para projectos de transformação social e individuação própria: começa a sarar. Antes, plasma-se na busca de uma nova casa para si e amigas, busca outro, e bem mais importante, abrigo…  

Estamos ainda longe de um epílogo que nos surpreende, ao descobrirmos a redactora destas vozes, qual supra-narradora que se apresenta em registo epistolar, definindo uma linhagem no feminino. Na encenação desta, sucedem-se capítulos que precisam de justificar não só um, mas vários abrigos, iluminando título, ao plurificar resposta: que mulher, se há várias – Lúcia, Sara, Gertrudes (mãe calada, que percebe o erro de silenciar uma paternidade) e, no exercício intelectual, Manuela –, também vitoriosas, e não só sobre um Don Juan psicopata, quando irrompe uma Dona Joana borderline?

Vão-se firmando, assim, personagens: um Luís carente, em trânsito para união feliz, prevista, mas adiada, para exaspero dos leitores; um Manaças histriónico, que se desconhece, apanhado em falso, até idêntica libertação: de modo diverso, fecham o círculo da história. 

A denúncia da violência doméstica, uma das principais isotopias a partir, já, do namoro, traz-nos um comissário atento, impoluto, cum grano salis bastante, frente ao qual se perfila, em desnudamento gradual, um bom sacana. É um jogo de sombras, que a linguagem também possui: responde-se até onde queremos, há subentendidos, uma relação de forças que vai pender para o lado do senhor comissário. Ainda não conhecemos suficientemente este, e menos aquele, para os levar ao nosso consultório. No mais, a vida de lordes calha aos que menos a merecem, mas, que saibamos, e mostram estas páginas, na Terra também se faz justiça...

Se nos reduzíssemos ao singular, o título corresponderia à psicóloga Lúcia: ela lança alertas, orienta a heroína ‒ é a lucidez que tudo organiza. Lúcia (a luz vem do Oriente), deusa ex machina, salva Sara por interposta Ana Bernardo, médica – um dos muitos nomes reais aqui pululando, em efeito de real que nos cumplicia –, salva Sara da acusação de ladra, salva a dignidade dos pais nas respostas que dá à abusadora filha Joana. Seu contraponto, mas análogo da filha, o vencido e amargo cirurgião Amaro falha nas tentativas de recuperar a mulher, perseguindo-a até ao reino dos Algarves. 

Ora, desde o título, secundado nas epígrafes, a diegese tem um quadro filosófico, é lida segundo a tese de doutoramento que prepara Manuela, sobrinha de Lúcia. São as duas personagens mais inteligentes de um, a espaços, romance-ensaio, fórmula rara entre nós. Bebe no Norte kierkegaardiano, bússola de fruição – mas também de dúvida e desespero −, cujo correspondente estético orienta o comportamento do homem de hoje, enredado no imediato. A nossa tragédia é sermos incapazes de enganar este labirinto, para desembocar na serenidade de um lago moral ou religioso. Pelo contrário: o donjuanesco (aqui, admiravelmente associado ao desespero de Sísifo) reveste-se, ainda, de manipulação, a qual esconde verdadeiros torcionários, cumulando-se na figura de Amaro, que Lúcia também conhece há muito – o que nos deixa mais intrigados. 

A sedução embriaga, na sua «bruma de palavras», em seu «nevoeiro emocional», mas a falta de lucidez é fatal: cria as «enganadas» − mais doloroso se iniciadas, virgens −, que ou abrem os olhos para um rosto e não para um heterónimo (é a caminhada de Sara) ou põem termo à vida. Aos pares Kierkegaard / Johannes e Regina / Cordélia sucederá o mimético Lukács / Irma, pintora que, abandonada, e mesmo casando, há-de suicidar-se (1911). Suspenso está o destino de Manuela, teoricamente informado: o que a espera, ainda? Não precisará, no lapso de tensão que é redigir uma tese, da interlocução socrática da tia, salva, por seu lado, por outro coração?

A figura de Lúcia agiganta-se na revelação de uma tragédia antiga, que, paradoxalmente, a fragilizou, ao tornar-se permissiva face à filha. Não quer repetir o erro com a sobrinha, que encarreira para um estudo libertador, tal como o estudo vai salvar Sara. A relação entre sangue, carácter, educação, é ainda suficiente: também o meio pesa, sem falar nos genes. Até chegar aí, resolve-se, por oposição a Joana, o caso de Manuela: o ciúme pode não passar de narcisismo. Pergunta-se a outrem se se interessa por nós? Por que razão amar e ser amado vai de si, ou se há-de tornar uma inevitabilidade? A dupla condição está à sua frente: afecto e saber salvam a tia. 

Manuela percebe o seguinte: Kierkegaard recusa à mulher o que esta já fabrica, na vida social, e Simmel em breve lhe concede: não só o império da moda, mas o jogo da coqueteria, Sim e Não, dar e recusar. Em quase integral corrente de consciência de Manuela (já consciente de que a obsessão é um descaminho, pelo que urge mudar de carril), o que temos é uma pausa narrativa, uma espécie de explicação de cenas idas e por vir, na recusa absoluta, por um lado, de qualquer tipo de preconceito, e, por outro, escalpelização dos porquês do sedutor, que se engana a si mesmo e atenta contra os direitos de outrem. A argumentação é arrasadora, e a conclusão – usar a mulher como ponte para chegar a outro homem ‒ obriga-nos a rever muita matéria. Ferenczi Sándor via no pénis essa ponte, sob cuja águas femininas o homem temia banhar-se. Na prática, em clave psicanalítica, retomava aquele Simmel, com um artigo iluminador intitulado “Ponte e porta”: «Vencendo o obstáculo, a ponte simboliza a extensão da nossa esfera volitiva no espaço.»

Há outras criaturas na sombra, explicações que aguardam, golpes de teatro e da sorte. Relevo, como próprio do folhetim, um rapto e uma série de revelações. Sob a égide de um pouco lido romance de formação aquiliniano, assistimos à «via sinuosa» por que enveredam personagens: Joana e capangas, testas-de-ferro de um resguardado Amaro, poltrão na sua poltrona; Sara, uma sequestrada logo senhora do seu antigo espaço, porque mudou de atitude e linguagem, encontrou a própria via, ferindo fundo no escudo preconceituoso daquele, cujas delícias (adiadas) estavam em imaginar a mulher nos braços de outro homem e dela ouvir pormenores; Lúcia, temendo um desenlace da perdida Sara eventualmente incestuoso; Manaças e mãe, que se explicam, e a um longo passado, por um equívoco teatral. Para comportamentos retorcidos, falas instrutivas, que esclarecem muitas ligações escondidas.  

Na alternância ritmada de planos, estes núcleos de personagens e de sentidos alternam, também, lugares em Lisboa e no Porto, o que é outra forma de revisitar cenas passadas. Se, na capital, se instaura a pacificação (mas o perigo espreita), já, na cidade da Virgem, aumenta o concentrado de tensões no triângulo Amaro-Joana-Manaças. Joana, peça fulcral, é uma delícia de cinismo, que o jogo de diminutivos faz sarcasmo, ao lado do à-vontade de locuções novas e gíria bem apanhada. Anima qualquer pato-mole que se julgue bravo, e faz-nos sorrir. Joana é também a demonstração de que o sangue é o atestado mais incerto nas prisões familiares.

Na vertigem da acção, realço a coreografia sado-marítima bebida em Álvaro de Campos ‒ breve, mas intensa, violenta e metaforicamente bem consumada ‒, que atinge um pico de tensão e vira a própria história: episódio de enganos e cúmulo da máscara (no que ilumina de Amaro), anuncia Manaças qual anjo vingador. Em poucas linhas, esta escrita solta tingida de ironia e quadros insólitos entremostra vidas anestesiadas que só a tragédia resolve. Quanto à metaforização desse momento alto, decisivo no argumento, diremos que não é fácil, em literatura, descrever uma simples cena erótica, sem entrar em excessos da nova vaga de jovens autores, onde o palavrão é acto, na falta de actos consentâneos que signifiquem fusão. A subtileza é uma arte difícil e louvo a solução encontrada, que não escorrega no mau gosto.   

Nesta linha, como descrever o primeiro quadro de intimidade entre Luís e Sara, há tanto anunciado? É um desafio maior. Se ‘o primeiro beijo’ deu título de filme, e já se tornou comum no cinema, ou humedece de nostalgia velhas fotografias, aguardamos, ainda, antologia literária sobre esse instante raro, que entreabre as portas de um momento irrepetível… Ora, neste episódio, um telefonema cedo nos defrauda expectativas ‒ para acorrer à cabeceira de mãe doente ‒, e, quando esperávamos solução fácil para fugir a prosa difícil (qual seja a de contar amor em acto), ambos se superam no gesto interrompido, abençoado pela família dele (bênção retomada na visita à igreja de Torre de Moncorvo) e pelo tio dela, criador da Estalagem do Paço, onde a história de ambos se funde, e consuma, em suave culminar de gozo. Sugestão da técnica folhetinista, diferiu-se esse abraço fundacional, para que mais seguramente se enlaçasse na aprovação dos nossos maiores e no espírito do lugar ‒ «amor confluente» que dá origem, talvez continuidade, à história...      


ERNESTO RODRIGUES (Torre de Dona Chama, 1956) é poeta estreado em 1973, ficcionista, crítico literário, ensaísta e tradutor de Húngaro. Antigo jornalista e colaborador regular da Imprensa escrita, leitor de Português na Universidade de Budapeste, é doutor e agregado pela Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras ensina desde 1989, aqui dirigindo o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (2015-2019). Prémio PEN Clube – Narrativa com
Uma Bondade Perfeita (2016), o seu sétimo e último romance é Um Passado Imprevisível, 2018. No ensaio, destaca-se Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal (1998), seguido de uma dezena de outros títulos, a par da edição de clássicos. Acaba de reunir olhares sobre estrangeiros em Literatura Europeia e das Américas, 2019.