23/09/2021

"A Mulher que Venceu Don Juan" na Roménia

BIOBIBLIOGRAFIA – 2021

 Teresa Martins Marques é presidente do PEN Clube Português.

Foi membro da direcção da Associação Portuguesa de Escritores e sua Secretária-Geral.  Foi também vice-presidente do Conselho Fiscal da Associação Portuguesa de Críticos Literários .  É membro da Sociedade Portuguesa de Autores. 

  Investigadora integrada no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL).

Fez doutoramento em Literatura e Cultura Portuguesas, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, instituição onde obteve a licenciatura em Filologia Românica e o mestrado em Literatura Portuguesa Moderna. 

 Na década de 80 foi assessora de um Grupo Parlamentar da Assembleia da República, com intervenção na Comissão de Educação, para questões relacionadas com o Projecto de Lei de Bases do Sistema Educativo. No âmbito deste Projecto, desenvolveu intensa actividade de palestrante, de norte a sul do país, em debates que dinamizaram a Formação  Contínua de Professores.

Na década de 90 fez parte da equipa do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa (1992 a 1995), nomeadamente na vertente da terminogia literária.

Foi Orientadora Pedagógica da Formação de Professores tendo elaborado (em co-autoria com a docente de Didáctica do Francês, da Faculdade de Letras de Lisboa), diversos manuais antológicos – Salut, France 2000! -, de Geografia, Civilização e Literatura Francesas, bem como os programas desta disciplina, para a Formação de Jovens em Regime de Alternância (Ministério da Educação / Ministério do Trabalho).

 Ao nível editorial, teve a seu cargo a direcção da Edição das Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, no Círculo de Leitores (1994-1996), e assinou cada uma das introduções dos 13 volumes da Obra.  É actualmente a representante deste escritor, por Procuração exarada no Consulado de Portugal, em Nova Iorque, pela sua única neta Monica Migueis Jakobs.

Dirigiu a equipa de organização do Espólio Literário de David Mourão-Ferreira, na Fundação Calouste Gulbenkian / Ministério da Educação (1997-2004).

Fez parte de júris de ficção, de poesia e de ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, da FENPROF, da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, do PEN Clube Português e das Correntes d’Escritas. Durante vários anos, integrou o Júri do Instituto Camões, para o Programa de Apoio à Tradução da Literatura Portuguesa no Estrangeiro.

Colaboração com o PEN International :

 Publicação do artigo « Enfance et Violence chez José Rodrigues Miguéis et Jennifer Clement» (Presidente do International PEN)  in  PEN 50th International Writers Meeting,  Bled,  April, 2018.

Publicação do artigo  Écrire la Violence» )  in  PEN 52th International Writers Meeting,  Bled,  April, 2020.

  Desenvolve actividade regular, como palestrante e conferencista, em Portugal e no estrangeiro ; tem participado em  congressos ligados às suas áreas de trabalho, com colaboração ensaística nas principais revistas literárias de Portugal e do Brasil e em cerca de três dezenas e meia de volumes colectivos de ensaio, para além dos seguintes  títulos  individualmente publicados :

 ENSAIO:

-Si On Parle du Silence de la Mer (1985) - Estudo da novela de Vercors, Le Silence de la Mer;

-O Eu em Régio: a Dicotomia de Logos e Eros. Prémio de Ensaio José Régio / 1989. 1ª ed. 1993; 2ª ed. 1994;

-O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis. (tese de mestrado) 1ª ed. 1994; 2ª ed. 1996; 3ª ed.1997;

 -Leituras Poliédricas. 1ª ed. 1996, 2ª ed. refundida e aumentada, 2002;

-Clave de Sol - Chave de Sombra. Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira (2011- tese de doutoramento).  Edição em livro, refundida e aumentada, 2016.

BIOGRAFIA: O Fio das Lembranças - Biografia de Amadeu Ferreira, 2015.

CONTO: Carioca de Café, 2009; Degraus do Passado, 2014 ; O Avesso do Amor, 2019 ; Chronica Adefonsi Imperatoris, 2020 ; Casamento Secreto, 2021.

 TEATRO: Anjas ao Sol, 2015.  (Incluído no livro colectivo Anjas do Nosso Mundo, Editora Labirinto de Letras.)

ROMANCE: A Mulher que Venceu Don Juan, 2013. Sobre este romance foram  realizadas duas  dissertações : de licenciatura, na Universidade de Bucareste por Gabriel Alexandru Streinu (2014) ; de mestrado, por Ana Carolina Mendes Camilo : « Representações Femininas em A Mulher Que Venceu Don Juan» . Orientação da Profª. Doutora Maira Angélica Pandolfi, UNESP, Brasil, Janeiro de 2019.   

  OS DIAS DA PESTE: Organização e prefácio da antologia internacional que reúne 272 autores de 58  países, que escrevem em português, inglês , espanhol e francês.

TRADUÇÃO:Acaba de ser publicada  a tradução deste romance na Roménia,  feita Georgiana Barbulescu, na Editora Electra  de Bucareste, cuja capa aqui apresentamos. 

20/09/2020

Do «amor confluente» Ernesto Rodrigues

 «Saudades, só tenho do mar.» Limiar, esta frase marca um novo tempo de quem enuncia, reforçado na cisão do advérbio. Não se percebe ainda por inteiro a rasura do passado, nem que, sob no me suposto, a Sarinha de outrora se vê protagonista de drama que, aos 45 anos, lhe transtorna existência passiva, trazendo-a à vida. A toada evocativa da primeira página, assente na repetição vocabular e frásica, reitera a distância entre o mar vivo da Foz, única memória feliz, e o mar triste do Monte da Caparica; mas este é refúgio, quando se toma, finalmente, em mãos o destino, à deriva desde os 17 anos, ao cegar na paixão por bem mais velho, bonitão e todo salamaleques, cirurgião plástico. Decorrem 28 anos nas mãos deste, que lhe toma alma, fortuna e, no chão da infância, montou a Clínica Paradiso, onde vai destruí-la. Ironia. Entre um ser possessivo e mulher-bibelot a quebrar amarras conta-se esta venturosa estreia de largo fôlego.

Romance de acção que percorre a geografia nacional e ainda salta a América latina salvífica, quero vê-lo, me suposto, a Sarinha de outrora se vê protagonista de drama que, aos 45 anos, lhe transtorna existência passiva, trazendo-a à vida. A toada evocativa da primeira página, assente na repetição vocabular e frásica, reitera a distância entre o mar vivo da Foz, única memória feliz, e o mar triste do Monte da Caparica; mas este é refúgio, quando se toma, finalmente, em mãos o destino, à deriva desde os 17 anos, ao cegar na paixão por bem mais velho, bonitão e todo salamaleques, cirurgião plástico. Decorrem 28 anos nas mãos deste, que lhe toma alma, fortuna e, no chão da infância, montou a Clínica Paradiso, onde vai destruí-la. Ironia. Entre um ser possessivo e mulher-bibelot a quebrar amarras conta-se esta venturosa estreia de largo fôlego.

Romance de acção que percorre a geografia nacional e ainda salta a América latina salvífica, quero vê-lo, sobretudo, como de personagens, na definição que nenhum outro contemporâneo labora tão densamente. Em fundo, questões vitais: infâncias traumáticas e seus efeitos sobre próximos; como sentir-se inferior descamba em rivalidade sem sentido; e, na psicografia do sedutor, segundo bibliografia nem sempre convocada pelos especialistas, uma pergunta inquietante: não será Don Juan um homossexual que se desconhece, ou prolonga a infelicidade, quando seria mais útil assumir-se? 

Aspecto igualmente marcante, recuperado no policial que também é, a espaços, este enredo de encaixes perfeitos familiariza-nos com personagens secundárias: o pathos cruel e desencadeador que inaugura é resolvido por motorista e velha mãe protectora (a seu tempo, recompensados), e será outra dupla mãe e filho a decidir, no final, a sorte de quem, vingativo – gélido, mandão, tecedor de anjos –, promove a acção. A emergência destas figuras de segunda linha é mais do que um topos de folhetim saído no Facebook (2012-2013), com episódios entretanto revistos e acrescentados em livro (2013): vivem na periferia, também da linguagem, mas trazem calor às relações, nessa ternura dos que menos têm, mas são mais.

Na alternância de registos – discursivos, literários, filosóficos, topográficos… –, vemos como se vai fazendo mão lesta de artista na conjugação entre primeira e terceira pessoas, e suas conexões a diálogos vivos e variados entre enunciação directa, indirecta e indirecta livre, mas como, simultaneamente, Sara e sua máscara Esmeralda (abismando-se, nesta, a própria literatura, em alusão hugoliana) multiplicam contactos, e novos quadros sociais e linguísticos se nos entreabrem. O também duplo processo de olhar em frente, avançando no presente da narrativa, e servir-se do flashback, para melhor compreender gestos futuros, vai conduzir-nos da infância inconsciente aos erros do casamento, da vontade de libertação e autonomia a novas relações pacificadoras. Ao experimentar a pobreza, Sara cria solidariedades; a injustiça, mais viva no melindre da idade, encaminha sujeito sensível para projectos de transformação social e individuação própria: começa a sarar. Antes, plasma-se na busca de uma nova casa para si e amigas, busca outro, e bem mais importante, abrigo…  

Estamos ainda longe de um epílogo que nos surpreende, ao descobrirmos a redactora destas vozes, qual supra-narradora que se apresenta em registo epistolar, definindo uma linhagem no feminino. Na encenação desta, sucedem-se capítulos que precisam de justificar não só um, mas vários abrigos, iluminando título, ao plurificar resposta: que mulher, se há várias – Lúcia, Sara, Gertrudes (mãe calada, que percebe o erro de silenciar uma paternidade) e, no exercício intelectual, Manuela –, também vitoriosas, e não só sobre um Don Juan psicopata, quando irrompe uma Dona Joana borderline?

Vão-se firmando, assim, personagens: um Luís carente, em trânsito para união feliz, prevista, mas adiada, para exaspero dos leitores; um Manaças histriónico, que se desconhece, apanhado em falso, até idêntica libertação: de modo diverso, fecham o círculo da história. 

A denúncia da violência doméstica, uma das principais isotopias a partir, já, do namoro, traz-nos um comissário atento, impoluto, cum grano salis bastante, frente ao qual se perfila, em desnudamento gradual, um bom sacana. É um jogo de sombras, que a linguagem também possui: responde-se até onde queremos, há subentendidos, uma relação de forças que vai pender para o lado do senhor comissário. Ainda não conhecemos suficientemente este, e menos aquele, para os levar ao nosso consultório. No mais, a vida de lordes calha aos que menos a merecem, mas, que saibamos, e mostram estas páginas, na Terra também se faz justiça...

Se nos reduzíssemos ao singular, o título corresponderia à psicóloga Lúcia: ela lança alertas, orienta a heroína ‒ é a lucidez que tudo organiza. Lúcia (a luz vem do Oriente), deusa ex machina, salva Sara por interposta Ana Bernardo, médica – um dos muitos nomes reais aqui pululando, em efeito de real que nos cumplicia –, salva Sara da acusação de ladra, salva a dignidade dos pais nas respostas que dá à abusadora filha Joana. Seu contraponto, mas análogo da filha, o vencido e amargo cirurgião Amaro falha nas tentativas de recuperar a mulher, perseguindo-a até ao reino dos Algarves. 

Ora, desde o título, secundado nas epígrafes, a diegese tem um quadro filosófico, é lida segundo a tese de doutoramento que prepara Manuela, sobrinha de Lúcia. São as duas personagens mais inteligentes de um, a espaços, romance-ensaio, fórmula rara entre nós. Bebe no Norte kierkegaardiano, bússola de fruição – mas também de dúvida e desespero −, cujo correspondente estético orienta o comportamento do homem de hoje, enredado no imediato. A nossa tragédia é sermos incapazes de enganar este labirinto, para desembocar na serenidade de um lago moral ou religioso. Pelo contrário: o donjuanesco (aqui, admiravelmente associado ao desespero de Sísifo) reveste-se, ainda, de manipulação, a qual esconde verdadeiros torcionários, cumulando-se na figura de Amaro, que Lúcia também conhece há muito – o que nos deixa mais intrigados. 

A sedução embriaga, na sua «bruma de palavras», em seu «nevoeiro emocional», mas a falta de lucidez é fatal: cria as «enganadas» − mais doloroso se iniciadas, virgens −, que ou abrem os olhos para um rosto e não para um heterónimo (é a caminhada de Sara) ou põem termo à vida. Aos pares Kierkegaard / Johannes e Regina / Cordélia sucederá o mimético Lukács / Irma, pintora que, abandonada, e mesmo casando, há-de suicidar-se (1911). Suspenso está o destino de Manuela, teoricamente informado: o que a espera, ainda? Não precisará, no lapso de tensão que é redigir uma tese, da interlocução socrática da tia, salva, por seu lado, por outro coração?

A figura de Lúcia agiganta-se na revelação de uma tragédia antiga, que, paradoxalmente, a fragilizou, ao tornar-se permissiva face à filha. Não quer repetir o erro com a sobrinha, que encarreira para um estudo libertador, tal como o estudo vai salvar Sara. A relação entre sangue, carácter, educação, é ainda suficiente: também o meio pesa, sem falar nos genes. Até chegar aí, resolve-se, por oposição a Joana, o caso de Manuela: o ciúme pode não passar de narcisismo. Pergunta-se a outrem se se interessa por nós? Por que razão amar e ser amado vai de si, ou se há-de tornar uma inevitabilidade? A dupla condição está à sua frente: afecto e saber salvam a tia. 

Manuela percebe o seguinte: Kierkegaard recusa à mulher o que esta já fabrica, na vida social, e Simmel em breve lhe concede: não só o império da moda, mas o jogo da coqueteria, Sim e Não, dar e recusar. Em quase integral corrente de consciência de Manuela (já consciente de que a obsessão é um descaminho, pelo que urge mudar de carril), o que temos é uma pausa narrativa, uma espécie de explicação de cenas idas e por vir, na recusa absoluta, por um lado, de qualquer tipo de preconceito, e, por outro, escalpelização dos porquês do sedutor, que se engana a si mesmo e atenta contra os direitos de outrem. A argumentação é arrasadora, e a conclusão – usar a mulher como ponte para chegar a outro homem ‒ obriga-nos a rever muita matéria. Ferenczi Sándor via no pénis essa ponte, sob cuja águas femininas o homem temia banhar-se. Na prática, em clave psicanalítica, retomava aquele Simmel, com um artigo iluminador intitulado “Ponte e porta”: «Vencendo o obstáculo, a ponte simboliza a extensão da nossa esfera volitiva no espaço.»

Há outras criaturas na sombra, explicações que aguardam, golpes de teatro e da sorte. Relevo, como próprio do folhetim, um rapto e uma série de revelações. Sob a égide de um pouco lido romance de formação aquiliniano, assistimos à «via sinuosa» por que enveredam personagens: Joana e capangas, testas-de-ferro de um resguardado Amaro, poltrão na sua poltrona; Sara, uma sequestrada logo senhora do seu antigo espaço, porque mudou de atitude e linguagem, encontrou a própria via, ferindo fundo no escudo preconceituoso daquele, cujas delícias (adiadas) estavam em imaginar a mulher nos braços de outro homem e dela ouvir pormenores; Lúcia, temendo um desenlace da perdida Sara eventualmente incestuoso; Manaças e mãe, que se explicam, e a um longo passado, por um equívoco teatral. Para comportamentos retorcidos, falas instrutivas, que esclarecem muitas ligações escondidas.  

Na alternância ritmada de planos, estes núcleos de personagens e de sentidos alternam, também, lugares em Lisboa e no Porto, o que é outra forma de revisitar cenas passadas. Se, na capital, se instaura a pacificação (mas o perigo espreita), já, na cidade da Virgem, aumenta o concentrado de tensões no triângulo Amaro-Joana-Manaças. Joana, peça fulcral, é uma delícia de cinismo, que o jogo de diminutivos faz sarcasmo, ao lado do à-vontade de locuções novas e gíria bem apanhada. Anima qualquer pato-mole que se julgue bravo, e faz-nos sorrir. Joana é também a demonstração de que o sangue é o atestado mais incerto nas prisões familiares.

Na vertigem da acção, realço a coreografia sado-marítima bebida em Álvaro de Campos ‒ breve, mas intensa, violenta e metaforicamente bem consumada ‒, que atinge um pico de tensão e vira a própria história: episódio de enganos e cúmulo da máscara (no que ilumina de Amaro), anuncia Manaças qual anjo vingador. Em poucas linhas, esta escrita solta tingida de ironia e quadros insólitos entremostra vidas anestesiadas que só a tragédia resolve. Quanto à metaforização desse momento alto, decisivo no argumento, diremos que não é fácil, em literatura, descrever uma simples cena erótica, sem entrar em excessos da nova vaga de jovens autores, onde o palavrão é acto, na falta de actos consentâneos que signifiquem fusão. A subtileza é uma arte difícil e louvo a solução encontrada, que não escorrega no mau gosto.   

Nesta linha, como descrever o primeiro quadro de intimidade entre Luís e Sara, há tanto anunciado? É um desafio maior. Se ‘o primeiro beijo’ deu título de filme, e já se tornou comum no cinema, ou humedece de nostalgia velhas fotografias, aguardamos, ainda, antologia literária sobre esse instante raro, que entreabre as portas de um momento irrepetível… Ora, neste episódio, um telefonema cedo nos defrauda expectativas ‒ para acorrer à cabeceira de mãe doente ‒, e, quando esperávamos solução fácil para fugir a prosa difícil (qual seja a de contar amor em acto), ambos se superam no gesto interrompido, abençoado pela família dele (bênção retomada na visita à igreja de Torre de Moncorvo) e pelo tio dela, criador da Estalagem do Paço, onde a história de ambos se funde, e consuma, em suave culminar de gozo. Sugestão da técnica folhetinista, diferiu-se esse abraço fundacional, para que mais seguramente se enlaçasse na aprovação dos nossos maiores e no espírito do lugar ‒ «amor confluente» que dá origem, talvez continuidade, à história...      


ERNESTO RODRIGUES (Torre de Dona Chama, 1956) é poeta estreado em 1973, ficcionista, crítico literário, ensaísta e tradutor de Húngaro. Antigo jornalista e colaborador regular da Imprensa escrita, leitor de Português na Universidade de Budapeste, é doutor e agregado pela Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras ensina desde 1989, aqui dirigindo o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (2015-2019). Prémio PEN Clube – Narrativa com
Uma Bondade Perfeita (2016), o seu sétimo e último romance é Um Passado Imprevisível, 2018. No ensaio, destaca-se Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal (1998), seguido de uma dezena de outros títulos, a par da edição de clássicos. Acaba de reunir olhares sobre estrangeiros em Literatura Europeia e das Américas, 2019.


25/05/2020

Poema

Um beijo muito grato para a querida Cecilia!
Nota: Edito no blogue o poema de Cecília Barreira dedicado à autora de A Mulher que Venceu D. Juan, Teresa Martins Marques
À
Teresa Martins Marques
, 2 dias após o aniversário dela.
TERESA, TU QUE FALASTE DE DON JUAN
Entreato
-Desapareceu
Desapareceu no horizonte
Choro
Choro já não moro em ti já não me demoro já não morro já não escadeio já não deserto
Desapareceu o tejadilho
O milho
Espiga-
Desenvolvimento
Amiga
Uma víscera contrai e fico absorvida e estulta
A metafísica é uma absorção?
É metal vil e ouro de vime?
É solta e na parede branca desenvolta?
É equação?
É perdão?
É negação?
Desapareceu o nome do mapeamento
Ficas tu
Bússola de tanta gente
Ficas tu
Teresa
Ficas tu
Com a noção da espera
A pele e a escrita
Tu que falaste de Don Juan
Tu excelência
Tu
Teresa
cb
Teresa Martins Marques, Ernesto Rodrigues e 9 outras pessoas
2 comentários
Gosto
Comentar
Partilhar

27/02/2020

Uma aproximação do romance A Mulher que Venceu Don Juan ao dia de São Valentim

1. Começarei pelo título da obra: A Mulher que Venceu Don Juan. À partida, a julgar pelos oponentes e pela semântica do verbo enunciado, sobressai a sugestão de uma guerra dos sexos, ou melhor, como se diria hoje, de uma guerra dos géneros. Um duelo entre uma mulher e um homem. É particularmente oportuno falar neste tema, sobretudo no dia dos namorados, dia esse consagrado à união de dois seres que se amam e, por conseguinte, que se entregam ao jogo da sedução. Como se constrói uma relação a dois? Estão os namorados – ou está o casal – num relacionamento de igual para igual? Há complementaridade e reciprocidade entre os dois? Na relação amorosa, que atitudes infundem respeito?
2. As questões levantadas, tal como o título, têm eco na cena d’«O Beijo», de Gustav Klimt, que a capa do livro exibe, e que sugere uma fusão de dois corpos, ao que tudo indica, por iniciativa masculina. É certo estar patente no icónico quadro do pintor austríaco uma grande ambiguidade e tensão. Nessa imagem, é possível ler a plenitude e a união de amor, mas também é possível ver uma certa mágoa e resignação na figura feminina. Uns descortinam nessa pintura uma representação da agressividade masculina sobre a mulher; outros, todavia, interpretam as feições da «amada» como uma expressão de êxtase e completude. É esta ambivalência que torna o quadro fascinante. Mas associado ao tema que o título do livro evoca, percebe-se que a interpretação aqui seguida reenvia para a imagem do opressor, visto a figura masculina não ser um homem qualquer. Trata-se de um tipo bem particular, de individualismo moderno, ou seja, o narcisista Don Juan.
3. Desde a sua criação no séc. XVII, Don Juan, o mítico sedutor insaciável, vem atravessando os séculos e todos os géneros, do teatro à poesia, passando pela ópera, o romance e o cinema. A paródias também não escapou. Como se sabe, a personagem aparece pela primeira vez na peça El Burlador de Sevilla atribuída a Tirso de Molina (pseud. de Frei Gabriel Téllez), antes de 1630, data em que o texto dramatúrgico foi publicado. A obra encena um sedutor cínico e cruel que vive o momento presente e recusa submeter-se aos códigos da sociedade e da religião. Com o argumento dessa peça teatral, abre-se a via às reescritas, sendo a veia literária revisitada por artistas e escritores em toda a Europa e mundo ocidental. Com Don Quixote de la Mancha, Don Juan será, sem sombra de dúvida, a outra criatura de papel nascida em Espanha que ganhará foros de figura universal. Desde a sua criação, tal personalidade não cessou de exercer um grande fascínio sobre criadores e públicos. Don Juan fascina porque nele se encarna a atitude desafiante ao sagrado e à ordem social e moral. A faceta de revoltado aproxima-o de Fausto e Prometeu, sendo que ambos desafiaram o divino e a condição mortal do homem. Todavia, Don Juan não deixa também de embaraçar, porque o seu impulso para o jogo da sedução se esgota no prazer da conquista, desprezando o outro, não fazendo caso do território íntimo que o outro encerra.
Um dos primeiros avatares mais bem-sucedidos de El Burlador de Sevilla, surge em França, em 1665, quando Molière leva ao palco o seu Dom Juan, um figurão que, apesar do castigo que o espera no final, cativa o público pela sua audácia, o seu brio, o seu sentido crítico e a sua constante reivindicação à liberdade.
No século XVIII, Carlo Goldoni transforma o sulfúrico e corajoso herói barroco num vil libertino chamado Don Giovanni Tenorio que acaba por implorar perdão, ao passo que Mozart faz evoluir o seu Don Giovanni com a singular ligeireza do conquistador impenitente, de uma sensualidade exuberante, até à espetacular cena final que o precipita para as labaredas do Inferno.
No século XIX, os criadores românticos veem em Don Juan um duplo insatisfeito e melancólico que, através das suas conquistas, procura o amor absoluto e a mulher ideal. O personagem é menos libertino, menos cínico e, nalgumas versões, chega mesmo a arrepender-se do seu comportamento passado. Não raro, apresenta-se como um simples joguete do destino que é até capaz de se apaixonar sinceramente. É mais ou menos assim que o pintam escritores de toda a Europa, como o alemão Hoffman, o inglês Byron, o austríaco Lenau, o russo Pushkin, o francês Mérimée e o espanhol Zorrilla. Em Portugal, entre outros literatos, Guerra Junqueiro sublinhará, em «A Morte de D. João», de 1874, a responsabilidade que o inveterado sedutor tem na corrupção dos costumes.
No séc. XX, as versões do mito donjuanesco multiplicam-se ainda mais. A figura, apesar de apresentar traços anacrónicos, é revisitada sob diversos enfoques: surge ali um Don Juan envelhecido, grotesco e absurdo; noutro lugar, entra em cena um sedutor que, contrariamente ao modelo original, procura ludibriar-se a si próprio, qual dandy do séc. XIX, com aquele ar de afetada indiferença; além, perfila-se um Don Juan inapto a amar, porque, simplesmente, não consegue entregar-se e ajustar-se a outra pessoa; noutro cenário, descortina-se um Don Juan explicado pelo viés de uma homossexualidade recalcada; acolá, Don Juan rivaliza com Casanova; quando lhe é oferecido a possibilidade de narrar-se a si mesmo, o personagem admite ser amante mais perseguido do que perseguidor; numa outra ficção, invertem-se os papéis de género, e D. Juan dá lugar a uma Doña Juana.
Em Portugal, tal como fizeram os italianos, aclimatou-se por uns tempos o nome do implacável libertino em «D. João» e é, sobretudo, na tradição dramatúrgica que parece ter lugar cativo: António Patrício, Natália Correia e Norberto Ávila deram-lhe vida nesse género literário. Todavia, Almeida Faria ousa quebrar a ordem das coisas e lança, em 1990, o romance O Conquistador, em que cruza sebastianismo e donjuanismo, num registo de humor paródico, quando não absurdo. Já no séc. XXI, José Saramago irá também dar, em 2005, a sua versão desse mito moderno. Ao contrário de Almeida Faria, Saramago retorna à escrita para teatro com o fito de revisitar a versão de Mozart. Se o Don Giovanni de Mozart é um «libertino punido», o de Saramago será um «libertino absolvido». No desenlace, o eterno burlador não será castigado pelo divino, mas sim pela astúcia das mulheres, que conseguem desmontar-lhe a fama em vida e torná-lo motivo de chacota. Como é habitual suceder na obra saramaguiana, a salvação do homem, por muito pecaminoso que tenha sido, virá de uma mulher: é por ela conquistado e acaba por aprender a ser um homem comum.
4. Sem contemplações para com o figurão, seja ele denominado D. Giovanni, Johannes, D. João ou Monsieur Jean, o romance de Teresa Marques situa-se noutra linha de atuação: desmascarar perfis com necessidade compulsiva por sedução, tendo em conta o perigo que representam para os mais incautos ou fragilizados. A escritora não deixa de prestar a devida homenagem a alguns dos seus predecessores, por via das epígrafes que abrem o romance, reivindicando para si essa tradição literária sem fronteiras. Recupera a estrutura narrativa habitual do mito, assente nas seguintes invariantes: 1) encena-se o sedutor da alta sociedade que multiplica as conquistas; 2) este encarna o ser da desmedida, ao desafiar as instituições políticas, a consciência moral e a esfera sagrada; 3) no desfecho, confronta-se a uma forma de justiça sobrenatural ou humana, que põe cobro à sua carreira de sedutor. Porém, a romancista vai configurar a diegese a partir de contextos bem portugueses de violência doméstica e familiar que, como se sabe, pode manifestar-se de três formas: a violência física, a violência sexual ou a psicológica. E se a autora refere na sua obra, de várias maneiras, o Diário de Um Sedutor, de 1843, do dinamarquês Kierkegaard, tendo este partido, por sua vez, da análise que faz do D. Giovanni de Mozart, é para melhor dar a entender ao leitor que este seu romance se apresenta não só como uma explicação da entidade sedutora compulsiva (com um forte investimento na caracterização do seu perfil psicológico), mas também como um «manual de sobrevivência» para as vítimas de personalidades com síndrome de don-juan. Com efeito, três tipos de sedutores encartados serão aqui encenados, todos eles aparentados a um parasita social: um don-juan manipulador, perverso, egoísta e envelhecido, um outro, histriónico, invejoso, consumido por desejos inconsistentes que encobrem a sua pulsão homossexual, e uma versão feminina do donjuanismo, fria, calculista, arrogante e focada no dinheiro. Volto à questão inicial: que tipo de relação se pode esperar quando lidamos com uma pessoa destas? Certamente, «amor convergente» não será.
Só mais três notas:
A Mulher que Venceu Don Juan tem a particularidade de ter sido o primeiro romance-folhetim português publicado no Facebook (2012-2013), ou seja, foi dada a ler na rede social como uma narrativa seriada, antes de ser editada em volume, com uma nova versão revista e aumentada. Faz assim lembrar o processo de escrita dos folhetins do séc. XIX, de cuja poética é o romance de Teresa Marques devedor, ao desconstruir-lhe as componentes formais e temáticas para reconstruí-las à luz da nossa contemporaneidade. Tal como a narrativa folhetinesca oitocentista, A Mulher que Venceu Don Juan apresenta aquele modo próprio de escrita fluente, ágil e acessível, com ganchos para agarrar os leitores e sob o eventual influxo das preferências deles quanto ao desenrolar da ação. Neste caso, foram os seguidores da autora no Facebook que, ao darem o seu feedback à medida que o enredo avançava, colaboraram de algum modo na sua elaboração. Uma ilação é clara: graças a este procedimento, a autora deu um bom exemplo de utilização de uma rede social, contrariando assim ideias feitas sobre o uso e abuso dessa plataforma em linha.
Não posso também deixar de fazer notar que o romance A Mulher que Venceu Don Juan foi distinguido com o selo do Plano Nacional de Leitura, o que é, por si só, garantia da qualidade literária quer ao nível da escrita romanesca, quer ao nível do tratamento dos temas: sim, é o tema da violência doméstica entre marido e mulher que perpassa em toda a obra, mas o que move a trama é a tocante história de um amor inesperado que vai prender a leitora ou o leitor até à última página. Não admira, assim, que o livro seja recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de Leitura.
Na verdade, a obra oferece uma leitura empolgante, com uma ação habilmente encadeada, cheia de peripécias, numa engrenagem muito bem montada. Está escrita numa linguagem clara, sem rebuscamentos, mas perpassada de ironia. Não faltam jogos de intertextualidade, piscadelas ao leitor e algumas cenas surpreendentes, se não mesmo desconcertantes. A autora dá lugar a um narrador que toma partido pelos bons da fita em detrimento dos maus. A própria não tem medo de escolher de que lado quer estar: por isso, introduziu na intriga a personagem do nobre vigilante, uma espécie de anjo da guarda, que protege a heroína da iniquidade daquele que a quer manter sob o seu controlo. Além disso, a obra de ficção faz ligações diretas a temas e problemas do tempo histórico em que o enredo tomou forma (os anos de 2012 a 2013), e leva o leitor a vários cantos do país, do litoral ao interior e do Norte ao Sul. Nas páginas do romance perpassam conselhos práticos, diálogos que soam naturais, e até frases de efeito que convidam o leitor a fazer delas guias da vida…
O romance é, pois, multifacetado e assumidamente comprometido com várias causas, tais como a emancipação e valorização da mulher através da formação académica e do amor baseado no respeito mútuo, a consciencialização das desigualdades económicas como instrumento de reequilíbrio social, a relevância da literatura na formação humana nesta nossa era pós-humanista e a importância do voluntariado como mola propulsora da cidadania. Além de revelar toda a magia de um bom folhetim, o livro em apreço nunca abdica da profundidade que os temas explorados requerem.
Se, como sublinha – e bem – o slogan de uma campanha a decorrer atualmente numa rede de canais televisivos contra a violência no namoro: «S. Valentim que nos perdoe! Onde há violência, não há romance.», é caso para dizer que a história sobre violências e violações aqui narrada deu um grande romance.
Porque li este livro com prazer e muito interesse, só me resta recomendá-lo àqueles que têm o bom gosto de ler bons livros.


Bibliografia de apoio:
CASTAGNA, Vanessa, «Andanças literárias de Don Juan : o caso português de O Conquistador de Almeida Faria», Studi di Letteratura Ispano-Americana, n.º 36, Roma, Bulzoni Editore, 2002, pp. 41-78.
SILVA, Delfim Correia da, A sedução no mito de D. João, Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares apresentada à Universidade Aberta, em 2007. Disponível em https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/604/1/LC435.pdf, consultado no dia 10 de fevereiro de 2020.

Thierry Proença dos Santos

Resultado de imagem para Thierry Proença dos Santos

Thierry Proença dos Santos (Paris, 1966) foi docente na Universidade da Madeira, entre 1992 e 2019. Doutorado em Linguística Aplicada desde 2007, desenvolveu pesquisas e estudos sobre aspetos culturais, literários e linguísticos da Madeirensidade. É membro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL). Atualmente, exerce funções como técnico superior na Câmara Municipal da Guarda. Participou em várias iniciativas editoriais com artigos. Organizou ou coorganizou obras comemorativas, antologias literárias, coletâneas de poesia, volumes de ensaios, um número especial da revista Margem 2, e foi o responsável pela reedição de dois romances: Uma Família Madeirense, de João França, e Canga, de Horácio Bento de Gouveia. Publicou a monografia Comeres e Beberes Madeirenses em Horácio Bento de Gouveia, em 2005. Na Madeira, não descurou a intervenção cultural.

[14 de fevereiro de 2020, 18h00, Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço – Guarda]