29/07/2019

Um Conto de Fadas Pedagógico


  Psicanálise da Sedução numa Novela Exemplar de Teresa Martins Marques 
                                                                                        
                                                                                                     Luiza Nóbrega

A leitura de A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, sugere-nos a confluência de três vertentes literárias narrativas: a do romance psicológico (na observação especulativa das instâncias psíquicas pessoais e transpessoais das personagens); a do romance de formação – o bildungsroman (no que demonstra a reeducação de uma personagem); a do romance de crítica social (com uma trama que de certo modo se insere no quadro de uma denúncia sempre implícita, e por vezes explícita, dos vícios maiores que compõem o bas fond da delinqüência). E de certo modo guarda também alguma aparente similitude com a literatura de auto-ajuda (no sentido em que essa se propõe algum proveito a extrair-se da leitura, seja por induzir à auto-reflexão, seja como partilha solidária e terapêutica de indivíduos aproximados por identidades biográficas afetadas por tais e quais transtornos). E a própria autora, fazendo uso do seu conhecimento da metalinguagem, pela voz narradora diz que a tese defendida por uma das personagens situa-se na interface de três áreas epistemológicas: Filosofia, Psicologia e Literatura; o que se vê nos trechos em que da narrativa afloram citações de autores (vivos e mortos) e textos de filósofos e escritores, destacando-se entre eles as figuras tutelares de Kierkegaard e Don Francisco Manuel de Melo, autores, respectivamente, do Diário de Um Sedutor e da Carta do Guia de Casados.
Entretanto, pelo menos no que concerne à minha própria e primeira leitura, a vertente-raiz, o gênero envolvente no qual os demais se entremeiam e encaixam, é o do conto de fadas (no que, em sua estrutura maior, tem de parábola instrutiva, medida pedagógica e práxis terapêutica). Não um qualquer fairy tale, porém, e sim algo mais moderno, menos próximo de Andersen, mais próximo de um guia para a felicidade possível, que tangencie de leve os aforismos de Schopenhauer e Montaigne; ou de uma fábula do Italo Calvino ou Herman Hesse, com alguma sugestão do Cervantes das Novelas Exemplares, do Decameron de Boccaccio; ou, ainda, e mais propriamente, do português Júlio Dinis; tudo isso de mistura com o farto material que nos é despejado, nos últimos anos, pelos media, seja nos jornais e novelas da TV, seja na revista Caras e outras similares.
Ler um texto é inevitavelmente perceber o seu intertexto, explicitado nas linhas ou sugerido nas entrelinhas; e essa narrativa da Teresa Martins Marques, remetendo-nos explicitamente a certos autores, sugere-nos em certos tópicos autores outros, cujo punho encaminharia a narrativa para caminhos não confluentes, menos unívocos e mais inquietantes. Ocorrem-nos então, a nós, leitores, ante certas fendas que se abrem (sobretudo nos capítulos finais), sugestões de hipóteses que levariam a outras vertentes, mais à Henry James, Poe, talvez Conan Doyle, ou até Lovecraft. Faz parte da leitura a liberdade que o escritor deve dar aos leitores de extrair suas próprias ilações. Porque as obras literárias, como as artísticas, resultam de escolhas procedidas ante um amplo espectro de virtualidades, um labirinto de galerias no qual se assombraram autores como Kafka; e, por outro lado, como dizia Rachel de Queiroz, as personagens têm vida própria, e a certo ponto da narrativa tomam as rédeas ao autor, obrigando-o a modificar sua intenção inicial; e (isso digo eu) quando o autor não consente nessa sublevação, as personagens transferem a aceitação do desvio para o campo do leitor, alimentando, assim, o que se denomina teoria da recepção.  
Não se trata aqui, porém, de transformar e sim de compreender a narrativa em pauta, e o entendimento que dela extraímos na leitura. E para tanto será preciso, primeiramente, desfazer o equívoco de pensar que todos os contos de fadas sejam irrealidades que flutuem no ar como balões. Se muitos deles destinam-se a alimentar os sonhos da criança que permanece nos adultos, e outros pretendem formar adultos virtuosos, incutindo nas crianças preceitos morais edificantes; os melhores desse gênero têm, contudo, pés bem fincados no chão, e se parecem irreais é porque neles se impõe outra lógica, pela qual o autor se propõe - com punho decidido e à sua maneira - emendar, quase que por decreto, a desordem do mundo real, que ele conhece tão bem quanto os autores de romances realistas. E esse é - ou assim me parece – o propósito e motor da novela em causa.
Tais considerações visam advertir o leitor que porventura seja tentado a identificar nessa novela o propósito de obter, como cláusula primeira do pacto autor-leitor, a adesão desse ao que seria uma manipulação do enredo e das personagens com a intenção maniqueísta de instituir um círculo de virtuosos vencedores contra margens desviantes em que soçobram destroçados delinqüentes, psicopatas e malfeitores, arrastados na lama dos vícios com que se alimenta o high society, de hoje como de ontem. Do meu ponto de vista, seria um equívoco ceder a essa tentação, porque não se trata disso. Trata-se então de quê? Perguntará talvez o leitor que sofregamente devorou as mais de cinco mil páginas das Songs of Ice and Fire, em que o gênio narrador do George Martin, com sua equipe de mulheres geniais, investe implacavelmente sobre nossas ilusões de retorno e reencontro, ou de prêmio e recompensa aos justos e castigo punitivo aos vilões, sem poupar nem sequer os espíritos tutelares das personagens, simbolicamente figurados nos lobos que acompanham os fugitivos dispersos de Winterfell.  
É inegável que na trama desse enredo - desenrolado pela voz dum narrador dinâmico e versátil, onisciente todo o tempo, mas aderindo às vozes que empresta às personagens – não há lugar para a dúvida quanto à vitória dos justos sobre os malvados, unidos os primeiros contra os segundos, num círculo de predominância feminina, em que três figuras sobressaem, convergindo, sob o comando de uma psicanalista, na campanha que leva ao desmonte de um Don Juan hipócrita, respeitável cirurgião à superfície mundana e depravado facínora nos recessos do submundo.
É também inegável que não se concede crédito às vozes daqueles que discordam das heroínas, nem à hipótese de que por vezes, em certos casos, os vilões sejam o aviso aos puros de que não são tão puros quanto pensam – o que em psicanálise se designa com o termo retorno do recalcado. Ademais, poderia o leitor argumentar que no mundo real os grandes facínoras, encaixados numa trama de corrupção inconsútil, não se extirpam a valer, e muito menos por uma companhia de mulheres coadjuvadas por alguns bons exemplares do sexo masculino, postos em lugares e funções de poder.
Antecipando-me ao possível leitor cartesiano, fiz aqui o papel de advogada do diabo, não para nele me deter, mas sim para avançar com fundamento um comentário em que deixe claro porque vale a pena ler A Mulher que Venceu Don Juan. E vale mesmo a pena quando se percebe qual a lógica, ou melhor, a razão-de-ser do romance. Se lembrarmos que a literatura é uma vertente desdobrada em cadeia de elos intertextuais que obedecem a uma dialética, na qual se sucedem ideários estéticos opostos, gerando as diversas correntes literárias, que sucessivamente reagem aos excessos da anterior; e se pensarmos que - na deriva pós-naufrágio da arqueologia empreendida pelos gênios escavadores do mal, na Literatura como na Filosofia e na Psicanálise -  o nosso momento histórico-cultural-literário está saturado de narrativas escabrosas, sufocantes e devastadoras, na exposição implacável e desesperançada do cancro social, hoje exposto como algo banal nos reality shows, ante os quais perde força de impacto até mesmo aquele filme em que Pasolini traduziu para o cinema a Sodoma do criador de Justine e Juliette; se pensarmos mesmo a sério no momento histórico que é o nosso, nesse mundo em que a lama tóxica arrasta casas, famílias, cidades, num só ataque narcotizando as consciências e exterminando a esperança; talvez seja não só compreensível mas também oportuna a escrita em que se exemplifique a hipótese de resistência, que no caso se faz, não por uma Maria Moura, com o seu bando, nos sertões brasileiros, mas por uma Lúcia e uma Sara, entre o norte e o sul da Lusitânia. Do enredo mais não direi, para não me recair a acusação de spoiler, como sucedeu quando sem querer revelei o trecho das Crônicas de Gelo e Fogo em que Tyrion Lannister assassina o pai e quase fui banida do Facebook pelos preguiçosos seguidores da série medíocre Game of Thrones.
Direi, porém, das qualidades da narrativa, em que sobressaem a linguagem corredia, o estilo culto travestido em corriqueiro, as informações históricas, as remissões literárias, o jeito de narrar como que conversando com pessoas próximas, a sabedoria de vida expressa em algumas frases lapidares, por vezes citações de outros autores.  Conta-nos, por exemplo, a história de D. Francisco Manuel de Melo de um ângulo particular, que mais se memoriza porque nos entra pela via afetiva, tornando-nos mais próximo o escritor e personagem histórico.
Essa narrativa, com o poder de insinuar sensações e atmosferas através de imagens concretas, cativa-nos e nos arrasta, num estilo a correr, nunca monótono, em que se percebe uma autora dinâmica; provoca-nos com um léxico pujante, abundante e raro, em numerosas expressões e um rico acervo de provérbios que dão substância ao enredo e consistência à linguagem, ampliando assim o acervo dos leitores; diverte-nos com ironia afiada, que nos sugere o estilo mordaz do Eça de Queiroz, e em que transparece uma narradora com bagagem literária e pendor para a História, da vida pública e da vida privada.
Entretanto, a qualidade maior dessa novela, no meu entender, define-a como pragmática mais que literária. A autora, com um talento de psicóloga que nos dá pistas para compreensão dos meandros tortuosos do caráter e das interrelações humanas, compõe uma narrativa que tem o poder de atuar positivamente sobre o leitor, e isso, a meu ver, é relevante em dois sentidos: o editorial e o existencial. Sua escrita, assim me parece, destina-se a cativar leitores e atrair amigos. E, pensando de certo ângulo, de que adianta um livro se não desperta ressonâncias no leitor? Talvez isso, aliás, esteja implícito no conceito do correlativo objetivo, formulado por Eliot no seu ensaio sobre o Hamlet. Nesse tópico, evidencia-se a importância do fator afetivo, como veículo e combustível da relação autor-leitor, obra-leitura. Arte e Literatura, ao fim das contas, têm mais graça e fazem maior e melhor sentido quando praticados como exercício de partilha e intercomunicação encaixadas na vida, e portanto num intelecto que pulsa com afeição - e agora creio que fui talvez ao ponto-chave teórico exposto por Kristeva em seu La Révolution du Langage Poétique.
Feitas as contas dos pros e contras, se alguém disser que no mundo real as coisas não acabam assim, num final feliz, com o joio lançado à Geena e o trigo sobranceiro ao sol, como quis Mozart na Zauberflöte, a autora poderá de pleno direito responder, como Duchamp (ceci n’est pas une pipe), que isso não é uma descrição do mundo real e sim uma proposição do mundo que ela, autora, postula que seja, ou desejava que fosse. Um mundo sereno, solidário, em que a virtude vigilante impedisse ou corrigisse os vícios pérfidos provenientes e determinantes (o círculo vicioso) de excessos desenfreados. Assim entendida, se essa não for uma escrita salvífica, ou uma novela exemplar, que seja - consinta-se - um conto de fadas, mas no sentido em que esse, sendo o fechamento conclusivo de algo que na realidade permanece aberto e inconcluso, ganha valor e justifica-se enquanto parábola terapêutica, profilática e pedagógica.



Luiza Nóbrega
Viana do Castelo, 22.06.2019
 
CURRICULUM BREVE
LUIZA NÓBREGA

 
Poeta, ensaísta, ficcionista, pintora e pesquisadora.
Professora de Literatura e Artes aposentada pela UFRN.
Bacharelado em Direito (UFRN). Mestrado em Literatura Brasileira (UnB).  Doutorado em Literatura Portuguesa (UFRJ/UnL). Posdoc em Literatura Portuguesa (Universidade de Évora/UnL). Posdoc em Literatura Brasileira (Università degli Studi di Perugia).
Estudou Artes Visuais com Ivan Serpa, no Centro de Pesquisa de Artes de Ipanema (RJ). Participou nos grupos de estudos de Psicologia Profunda com Nise da Silveira.
Dedicou-se à pesquisa, ao ensaio, à poesia e à ficção.
Especializou-se no estudo da poética d’ Os Lusíadas de Camões e da obra de Lêdo Ivo.
Publicou livros, ensaios e poemas em diversos periódicos. Produziu vídeos e performances poético-teatrais. Realizou diversas exposições. Organizou colóquios e outros eventos acadêmicos. Participou em congressos e em mesas de encontros literários.
Mora em Portugal.
 
Publicou: O Canto Molhado. Metamorfose d’ Os Lusíadas: leitura do poema como poema (Lisboa: Publidisa, 2008); Quero Ser o que Passa: a poesia de Lêdo Ivo (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011); e No Reino da Água o Rei do Vinho: submersão dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d’ Os Lusíadas (Natal: EDUFRN, 2013).