12/08/2019

O AVESSO DO AMOR Teresa Martins Marques

 Lausanne, manhã de Outono.  O comboio pára na Station Ouchy. Uma jovem mulher sai da carruagem, olha de relance o relógio, cinco minutos para as sete, já está atrasada, corre para a saída. Passo apressado, vira à esquerda, atravessa a praça, em frente o Château d’Ouchy, vira novamente à esquerda. Envolto numa cortina de névoa, o Beau Rivage Palace mostra o esplendor da Belle Époque, há cento e cinquenta e sete anos, pela mão de La Harpe e Bertolini.  A jovem entra por uma porta das traseiras, nem sente o frio ao mudar de roupa, já aprumada no seu uniforme de femme de chambre.
Bonjour, Madame, je m’excuse.
 Vite, vite, allez-y! A chefe do pessoal faz um gesto brusco, cara de poucos amigos. Dois minutos atrasada, é como se faltasse ao emprego sem avisar!
Meu Deus, tão cedo e os clientes já a pé! Se eu fosse rica, havia de me levantar bem tarde! Ao longo do santo dia, Rita e as outras empregadas deixam o edifício a brilhar. Nem um grãozinho de pó. Cento e sessenta e nove quartos, trinta e três suites grand luxe. A sua preferida é a Lavaux- toit terrasse, vista magnífica sobre o parque, o Lac Léman, os Alpes. Quando ainda vivia na sua casita pobre da Covilhã e olhava lá longe os píncaros da serra da Estrela, pensava que o mundo não podia ser mais alto. Disse-o à Madame Dubois, casa chique em Rumine, o seu primeiro emprego de mulher-a-dias, na Suíça. A patroa sorriu. Era tão boa a Madame! Bem pena tem de a ter deixado, mas o Zé não gostava da pinta do Monsieur…
 Tu julgas que eu sou parvo, mulher? O que ele quer bem eu sei!
Rita manejava rápida o aspirador e os pensamentos. Não descansou, enquanto não me despedi.  Um castigo, aturar o Zé.  Com vinho ainda pior. Sempre a chatear, a remocar, um castigo! Não posso pôr os olhos em ninguém na rua, lá vem ele com a ladainha:
 Estavas a olhar para aquele?  Não tens vergonha? O que é que queres?
Não quero nada, Zé! Bem sabes que só te quero a ti! Prometi ao padre e vou cumprir a lei de Deus.
 Deus te livre que não cumpras!  Se te apanho em falso, mato-te! Ou julgas que não? Eu não chego para ti?
Oh Zé! Chegas e sobras! Deixa-te dessas conversas ruins! Eu sou uma mulher séria!
 Eu sei lá! Todo o dia rodeada de ricaços.   Tiens! la petite Rita…
 Santa Maria me valha! Se me chamam é porque precisam de alguma coisa!
 Pois precisam, precisam… Oh rapariga, antes fosses feia como um bode! Antes metesses medo ao susto!
E tu casavas comigo, se eu metesse medo ao susto?
Vamos mas é fazer um crianço para te entreteres…
Pois achas que tenho pouco trabalho? Que ainda preciso de um garoto agarrado à minha saia?
Não sei, não. Mas todos têm filhos e governam-se!
Governam-se mal! Tu não sabes o preço das creches? Achas que temos dinheiro para creches?
Qual creche? Ficavas em casa a cuidar do garoto, que é o que fazem as mulheres sérias!
 Que não precisam de trabalhar, como eu. Só tenho vinte e cinco anos, temos tempo.
Não sei, não…  Olha o lindo serviço da Sofia. Era fresca, era!
Deixa a minha irmã em paz!  Que mal te fez a Sofia?  Calou-se, sorumbático. Qualquer referência à minha irmã deixava-o transtornado.
Não quero nem ouvir falar de filhos!  Não sei se estou para aturar isto muito tempo, pensei com os meus botões, Deus me livre de dizer tal coisa, em voz alta, era um Deus nos acuda!   O Zé é bom homem, mas estou farta dos ciúmes dele. Cada dia mais farta! Ou é o Monsieur Dubois, ou o homem do supermercado, ou o desconhecido que vai na rua. Valha-me Deus!
Dou comigo a pensar no dia do nosso casamento. Devia ter sido o dia mais lindo da minha vida, mas que não foi.  Namorámos quase um ano. Ainda és virgem, Rita? E eu disse que sim.
 O meu pai tinha avisado:  não quero poucas-vergonhas cá em casa! Se vos vejo atravessadas, corro-vos a pontapé e à cinturada.  A minha irmã Sofia não fez caso e fez ela bem, porque morreu naquele maldito desastre, quando regressava a casa logo no dia do meu casamento. Meteu-se no carro e foi pela ribanceira abaixo.
Nem quero lembrar-me. Um pesadelo.  Quando veio o resultado da autópsia foi a surpresa geral - a Sofia estava grávida! Houve quem dissesse que se tinha matado para esconder… Rita não acreditou na patranha. E o casamento ficou para sempre ensombrado pela morte da irmã.
  O copo-d’água era modesto, as posses do meu pobre pai carpinteiro não davam para mais.  Os convidados levaram alguns presentes para a casa que já começámos a fazer em Tortosendo, na terra do Zé. O senhor padre fez um bonito sermão, não separe o homem o que Deus uniu. O bailarico estava animado, mas nem com os primos dancei. O Zé avisou de véspera, a minha mulher só dança com o marido.  De vez em quando vinha-me à ideia - como é que será aquilo? Perguntei à minha mãe - dói um bocado, mas passa logo. Temos de ter paciência, filha. Fomos passar a noite ao Hotel de Turismo da Guarda, presente do meu padrinho de baptismo, o Dr. Vasconcelos, da Farmácia Central.  O Zé, mal entrou no quarto - despe-te! Mal tive tempo de me descalçar. Agora é que vamos ver se és virgem ou não! Eu disse-te que era! Não acreditas? Já vamos ver… Atirou-se para cima de mim, parecia um leão esfaimado. Dei um grito. Porra, não mentiste! Pouco depois, virou as costas. Chorei baixinho.  Não viu as minhas lágrimas de sangue. A sua primeira  noite foi o avesso do amor.
 Rita era a mais velha, e a mais calada. Sofia era um azougue que punha a cabeça dos homens num virote. O Zé, típico machão, queria sol na eira e chuva no nabal. A Rita, mais sossegada, era mulher para casar, mas a Sofia é que lhe dava a volta ao miolo. Rondava-a sorrateiro e fazia-lhe olhinhos cada vez que se encontravam sozinhos.
Atão, rapariga, agora quase que já somos da família, tu andas com quem calha, que mal é que faz?
 Eu não ando com quem calha! Sai-me da frente, canalha! Tu julgas que era capaz de pôr os palitos à minha própria irmã? Sai-me da frente, alma do diabo!
Quanto mais o afastava, mais o Zé se babava atrás da quase cunhada, mulher atrevida, não se podia casar com ela, pensava o machão. Num fim de tarde de Verão, andava a Sofia a regar a horta, não se via vivalma pelas redondezas e o Zé aparece-lhe como uma assombração. Agarra-a pelos ombros, tapa-lhe a boca, atira-a ao chão com a sua força bruta de touro bravo. A rapariga esbraceja, mas não consegue livrar-se do mostrengo.
Se disseres alguma coisa à tua irmã, vais pagá-las caras! Sofia chegou a casa transtornada e limitou-se a dizer à irmã que o Zé não era boa peça, que fazia mal em casar com ele, ainda estava a tempo.
 Rita estava embeiçada por ele desde a escola primária, fez ouvidos moucos e o casamento seguiu em frente.  Agora na Suíça, longe dos pais, pensava muito na irmã morta.  Bem me dizia ela que não casasse com ele!  Que segredos ruins saberia que não me contou?
A verdade é coxa, mas sempre chega ao destino. Numa noite de insónia, Rita começou a ouvir o marido a tartamudear durante o sono.    Sof… So…fia…
Sofia? Ele estará a sonhar com a Sofia? Rita sentou-se na cama e pôs o ouvido à escuta quase em cima da boca do marido.
Sofia… malvada… ai! pagas pagas… Está quieta, que ainda levas!
Não havia dúvida, ele falava com a Sofia a dormir.  Passou a ficar acordada a ver se ele voltava a falar.  Percebeu que falava sobretudo quando bebia ao jantar e passou a encher-lhe ainda mais o copo.
Até que, numa noite, Rita ouviu clarinho como a água:
 Sofia, minha alma danada! Voltava a matar-te, sua puta reles! Anda cá, que te mato outra vez!...
Rita não pregou olho no resto da noite. Fez-se claro na sua cabeça. Foi o Zé que lhe fez alguma! Seria ele o pai do filho da irmã?  Só pode ter sido ele, o filho da puta! Casei-me com o assassino da minha irmã!  O mundo desabou sobre a cabeça da pobre rapariga.
Mal amanheceu, telefonou para Portugal, mandou a mãe chamar o pai ao telefone.
Não estás boa da cabeça, filha! Isso pode lá ser!  Ele é bruto, mas não é criminoso!  Aquilo foi acidente e pronto. Deus guarde a alma da pobrezinha!
Por favor, pai, vá falar com a polícia, dê-me o telefone da esquadra da Guarda, que eu mesma telefono! Chorava e engolia as lágrimas. Tanta zanga, tanto remoque, tanto ciúme e afinal é um criminoso! O que é que ele lhe terá feito?  Sofia estava grávida numa altura em que não se lhe conhecia namorado.  Rita começou a tecer uma teia ruim na sua cabeça.
O comissário da esquadra da Guarda ouviu tudo atentamente. O carro da Sofia ainda estava debaixo do telheiro, no curral da casa dos pais, coberto de giestas e tojos para onde o levaram a seguir ao acidente, puxado pelo carro de bois. Nunca ninguém suspeitou de crime. A Sofia tinha bebido um copito a mais no copo-d’água e foi pela ribanceira abaixo. A mãe mandou rezar um trintário de missas pela alma e vestiu-se de luto para sempre.
No dia seguinte, o comissário apresentou-se na casa dos pais de Rita para vistoriar o carro. Sim, senhores!  Ora uma destas! O carro tinha os travões cortados!  Recolheram as impressões digitais. Uma sorte o carro estar resguardado e não ter apanhado chuva!
 O resultado foi o que a Rita esperava. As impressões digitais eram as do seu homem! As do assassino da irmã!
 Já preso na cadeia da Guarda confessou, escarninho:
 Teve o que merecia, aquela puta! Andava a pavonear-se com saia de palmo, a entornar as mamas para fora da blusa!  Um homem não é de ferro, a culpa foi dela!
 Vais apodrecer no inferno, assassino!  E cuspiu-lhe na cara.  Foi a última vez que o viu.
Sete horas da manhã. Rita, em passo ligeiro, entra no Beau Rivage Palace.   A neblina começa a desfazer-se. Não tarda vem aí um belo dia de sol.
                                                                                                                                                      

29/07/2019

Um Conto de Fadas Pedagógico


  Psicanálise da Sedução numa Novela Exemplar de Teresa Martins Marques 
                                                                                        
                                                                                                     Luiza Nóbrega

A leitura de A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, sugere-nos a confluência de três vertentes literárias narrativas: a do romance psicológico (na observação especulativa das instâncias psíquicas pessoais e transpessoais das personagens); a do romance de formação – o bildungsroman (no que demonstra a reeducação de uma personagem); a do romance de crítica social (com uma trama que de certo modo se insere no quadro de uma denúncia sempre implícita, e por vezes explícita, dos vícios maiores que compõem o bas fond da delinqüência). E de certo modo guarda também alguma aparente similitude com a literatura de auto-ajuda (no sentido em que essa se propõe algum proveito a extrair-se da leitura, seja por induzir à auto-reflexão, seja como partilha solidária e terapêutica de indivíduos aproximados por identidades biográficas afetadas por tais e quais transtornos). E a própria autora, fazendo uso do seu conhecimento da metalinguagem, pela voz narradora diz que a tese defendida por uma das personagens situa-se na interface de três áreas epistemológicas: Filosofia, Psicologia e Literatura; o que se vê nos trechos em que da narrativa afloram citações de autores (vivos e mortos) e textos de filósofos e escritores, destacando-se entre eles as figuras tutelares de Kierkegaard e Don Francisco Manuel de Melo, autores, respectivamente, do Diário de Um Sedutor e da Carta do Guia de Casados.
Entretanto, pelo menos no que concerne à minha própria e primeira leitura, a vertente-raiz, o gênero envolvente no qual os demais se entremeiam e encaixam, é o do conto de fadas (no que, em sua estrutura maior, tem de parábola instrutiva, medida pedagógica e práxis terapêutica). Não um qualquer fairy tale, porém, e sim algo mais moderno, menos próximo de Andersen, mais próximo de um guia para a felicidade possível, que tangencie de leve os aforismos de Schopenhauer e Montaigne; ou de uma fábula do Italo Calvino ou Herman Hesse, com alguma sugestão do Cervantes das Novelas Exemplares, do Decameron de Boccaccio; ou, ainda, e mais propriamente, do português Júlio Dinis; tudo isso de mistura com o farto material que nos é despejado, nos últimos anos, pelos media, seja nos jornais e novelas da TV, seja na revista Caras e outras similares.
Ler um texto é inevitavelmente perceber o seu intertexto, explicitado nas linhas ou sugerido nas entrelinhas; e essa narrativa da Teresa Martins Marques, remetendo-nos explicitamente a certos autores, sugere-nos em certos tópicos autores outros, cujo punho encaminharia a narrativa para caminhos não confluentes, menos unívocos e mais inquietantes. Ocorrem-nos então, a nós, leitores, ante certas fendas que se abrem (sobretudo nos capítulos finais), sugestões de hipóteses que levariam a outras vertentes, mais à Henry James, Poe, talvez Conan Doyle, ou até Lovecraft. Faz parte da leitura a liberdade que o escritor deve dar aos leitores de extrair suas próprias ilações. Porque as obras literárias, como as artísticas, resultam de escolhas procedidas ante um amplo espectro de virtualidades, um labirinto de galerias no qual se assombraram autores como Kafka; e, por outro lado, como dizia Rachel de Queiroz, as personagens têm vida própria, e a certo ponto da narrativa tomam as rédeas ao autor, obrigando-o a modificar sua intenção inicial; e (isso digo eu) quando o autor não consente nessa sublevação, as personagens transferem a aceitação do desvio para o campo do leitor, alimentando, assim, o que se denomina teoria da recepção.  
Não se trata aqui, porém, de transformar e sim de compreender a narrativa em pauta, e o entendimento que dela extraímos na leitura. E para tanto será preciso, primeiramente, desfazer o equívoco de pensar que todos os contos de fadas sejam irrealidades que flutuem no ar como balões. Se muitos deles destinam-se a alimentar os sonhos da criança que permanece nos adultos, e outros pretendem formar adultos virtuosos, incutindo nas crianças preceitos morais edificantes; os melhores desse gênero têm, contudo, pés bem fincados no chão, e se parecem irreais é porque neles se impõe outra lógica, pela qual o autor se propõe - com punho decidido e à sua maneira - emendar, quase que por decreto, a desordem do mundo real, que ele conhece tão bem quanto os autores de romances realistas. E esse é - ou assim me parece – o propósito e motor da novela em causa.
Tais considerações visam advertir o leitor que porventura seja tentado a identificar nessa novela o propósito de obter, como cláusula primeira do pacto autor-leitor, a adesão desse ao que seria uma manipulação do enredo e das personagens com a intenção maniqueísta de instituir um círculo de virtuosos vencedores contra margens desviantes em que soçobram destroçados delinqüentes, psicopatas e malfeitores, arrastados na lama dos vícios com que se alimenta o high society, de hoje como de ontem. Do meu ponto de vista, seria um equívoco ceder a essa tentação, porque não se trata disso. Trata-se então de quê? Perguntará talvez o leitor que sofregamente devorou as mais de cinco mil páginas das Songs of Ice and Fire, em que o gênio narrador do George Martin, com sua equipe de mulheres geniais, investe implacavelmente sobre nossas ilusões de retorno e reencontro, ou de prêmio e recompensa aos justos e castigo punitivo aos vilões, sem poupar nem sequer os espíritos tutelares das personagens, simbolicamente figurados nos lobos que acompanham os fugitivos dispersos de Winterfell.  
É inegável que na trama desse enredo - desenrolado pela voz dum narrador dinâmico e versátil, onisciente todo o tempo, mas aderindo às vozes que empresta às personagens – não há lugar para a dúvida quanto à vitória dos justos sobre os malvados, unidos os primeiros contra os segundos, num círculo de predominância feminina, em que três figuras sobressaem, convergindo, sob o comando de uma psicanalista, na campanha que leva ao desmonte de um Don Juan hipócrita, respeitável cirurgião à superfície mundana e depravado facínora nos recessos do submundo.
É também inegável que não se concede crédito às vozes daqueles que discordam das heroínas, nem à hipótese de que por vezes, em certos casos, os vilões sejam o aviso aos puros de que não são tão puros quanto pensam – o que em psicanálise se designa com o termo retorno do recalcado. Ademais, poderia o leitor argumentar que no mundo real os grandes facínoras, encaixados numa trama de corrupção inconsútil, não se extirpam a valer, e muito menos por uma companhia de mulheres coadjuvadas por alguns bons exemplares do sexo masculino, postos em lugares e funções de poder.
Antecipando-me ao possível leitor cartesiano, fiz aqui o papel de advogada do diabo, não para nele me deter, mas sim para avançar com fundamento um comentário em que deixe claro porque vale a pena ler A Mulher que Venceu Don Juan. E vale mesmo a pena quando se percebe qual a lógica, ou melhor, a razão-de-ser do romance. Se lembrarmos que a literatura é uma vertente desdobrada em cadeia de elos intertextuais que obedecem a uma dialética, na qual se sucedem ideários estéticos opostos, gerando as diversas correntes literárias, que sucessivamente reagem aos excessos da anterior; e se pensarmos que - na deriva pós-naufrágio da arqueologia empreendida pelos gênios escavadores do mal, na Literatura como na Filosofia e na Psicanálise -  o nosso momento histórico-cultural-literário está saturado de narrativas escabrosas, sufocantes e devastadoras, na exposição implacável e desesperançada do cancro social, hoje exposto como algo banal nos reality shows, ante os quais perde força de impacto até mesmo aquele filme em que Pasolini traduziu para o cinema a Sodoma do criador de Justine e Juliette; se pensarmos mesmo a sério no momento histórico que é o nosso, nesse mundo em que a lama tóxica arrasta casas, famílias, cidades, num só ataque narcotizando as consciências e exterminando a esperança; talvez seja não só compreensível mas também oportuna a escrita em que se exemplifique a hipótese de resistência, que no caso se faz, não por uma Maria Moura, com o seu bando, nos sertões brasileiros, mas por uma Lúcia e uma Sara, entre o norte e o sul da Lusitânia. Do enredo mais não direi, para não me recair a acusação de spoiler, como sucedeu quando sem querer revelei o trecho das Crônicas de Gelo e Fogo em que Tyrion Lannister assassina o pai e quase fui banida do Facebook pelos preguiçosos seguidores da série medíocre Game of Thrones.
Direi, porém, das qualidades da narrativa, em que sobressaem a linguagem corredia, o estilo culto travestido em corriqueiro, as informações históricas, as remissões literárias, o jeito de narrar como que conversando com pessoas próximas, a sabedoria de vida expressa em algumas frases lapidares, por vezes citações de outros autores.  Conta-nos, por exemplo, a história de D. Francisco Manuel de Melo de um ângulo particular, que mais se memoriza porque nos entra pela via afetiva, tornando-nos mais próximo o escritor e personagem histórico.
Essa narrativa, com o poder de insinuar sensações e atmosferas através de imagens concretas, cativa-nos e nos arrasta, num estilo a correr, nunca monótono, em que se percebe uma autora dinâmica; provoca-nos com um léxico pujante, abundante e raro, em numerosas expressões e um rico acervo de provérbios que dão substância ao enredo e consistência à linguagem, ampliando assim o acervo dos leitores; diverte-nos com ironia afiada, que nos sugere o estilo mordaz do Eça de Queiroz, e em que transparece uma narradora com bagagem literária e pendor para a História, da vida pública e da vida privada.
Entretanto, a qualidade maior dessa novela, no meu entender, define-a como pragmática mais que literária. A autora, com um talento de psicóloga que nos dá pistas para compreensão dos meandros tortuosos do caráter e das interrelações humanas, compõe uma narrativa que tem o poder de atuar positivamente sobre o leitor, e isso, a meu ver, é relevante em dois sentidos: o editorial e o existencial. Sua escrita, assim me parece, destina-se a cativar leitores e atrair amigos. E, pensando de certo ângulo, de que adianta um livro se não desperta ressonâncias no leitor? Talvez isso, aliás, esteja implícito no conceito do correlativo objetivo, formulado por Eliot no seu ensaio sobre o Hamlet. Nesse tópico, evidencia-se a importância do fator afetivo, como veículo e combustível da relação autor-leitor, obra-leitura. Arte e Literatura, ao fim das contas, têm mais graça e fazem maior e melhor sentido quando praticados como exercício de partilha e intercomunicação encaixadas na vida, e portanto num intelecto que pulsa com afeição - e agora creio que fui talvez ao ponto-chave teórico exposto por Kristeva em seu La Révolution du Langage Poétique.
Feitas as contas dos pros e contras, se alguém disser que no mundo real as coisas não acabam assim, num final feliz, com o joio lançado à Geena e o trigo sobranceiro ao sol, como quis Mozart na Zauberflöte, a autora poderá de pleno direito responder, como Duchamp (ceci n’est pas une pipe), que isso não é uma descrição do mundo real e sim uma proposição do mundo que ela, autora, postula que seja, ou desejava que fosse. Um mundo sereno, solidário, em que a virtude vigilante impedisse ou corrigisse os vícios pérfidos provenientes e determinantes (o círculo vicioso) de excessos desenfreados. Assim entendida, se essa não for uma escrita salvífica, ou uma novela exemplar, que seja - consinta-se - um conto de fadas, mas no sentido em que esse, sendo o fechamento conclusivo de algo que na realidade permanece aberto e inconcluso, ganha valor e justifica-se enquanto parábola terapêutica, profilática e pedagógica.



Luiza Nóbrega
Viana do Castelo, 22.06.2019
 
CURRICULUM BREVE
LUIZA NÓBREGA

 
Poeta, ensaísta, ficcionista, pintora e pesquisadora.
Professora de Literatura e Artes aposentada pela UFRN.
Bacharelado em Direito (UFRN). Mestrado em Literatura Brasileira (UnB).  Doutorado em Literatura Portuguesa (UFRJ/UnL). Posdoc em Literatura Portuguesa (Universidade de Évora/UnL). Posdoc em Literatura Brasileira (Università degli Studi di Perugia).
Estudou Artes Visuais com Ivan Serpa, no Centro de Pesquisa de Artes de Ipanema (RJ). Participou nos grupos de estudos de Psicologia Profunda com Nise da Silveira.
Dedicou-se à pesquisa, ao ensaio, à poesia e à ficção.
Especializou-se no estudo da poética d’ Os Lusíadas de Camões e da obra de Lêdo Ivo.
Publicou livros, ensaios e poemas em diversos periódicos. Produziu vídeos e performances poético-teatrais. Realizou diversas exposições. Organizou colóquios e outros eventos acadêmicos. Participou em congressos e em mesas de encontros literários.
Mora em Portugal.
 
Publicou: O Canto Molhado. Metamorfose d’ Os Lusíadas: leitura do poema como poema (Lisboa: Publidisa, 2008); Quero Ser o que Passa: a poesia de Lêdo Ivo (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011); e No Reino da Água o Rei do Vinho: submersão dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d’ Os Lusíadas (Natal: EDUFRN, 2013).




04/02/2019

"A Mulher que Venceu Dom Juan", obra engenhosa de cativante ficção...


Querida Teresa,
          Venho felicitá-la pelo seu romance "A Mulher que Venceu Dom Juan", obra engenhosa de cativante ficção que tão bem soube temperar com diversos tipos de narratividade. Claro que os topónimos portuenses me acariciaram o ouvido e também dezenas de referências culturais que muito prezo. Foi uma bela ideia essa de o donjuanismo nos dois géneros; pois há mulheres que também têm o vício da sedução por coleccionismo. Evidente que só poderia ser uma Joana, o que é bem pensado. O facto de isso tudo desaguar na criminalidade e no bas-fond acrescenta à obra uma ambiência de suspense que mantém agudo interesse. Aquele Amaro é realmente um super-vilão que nos sabe bem ver assassinado com a cara esfrangalhada. Andamos um bocado fartos de certas narratividades cheias de experimentalismos indigestos e livros como o seu reconciliam-nos com uma limpa diegese. Só há uma coisa que não problematizo da mesma forma, embora perceba que não se adequava à economia do entrecho. É que parece que as relações entre as mulheres vítimas nas casas-abrigo não são sempre tão amoráveis e solidárias porque são seres perseguidos e torturados por pais (se os tiveram) e depois companheiros violentos. Aliás tenho pouca fé na solidariedade das mulheres, umas para as outras. Estive num grupo feminista nos fins dos 80, que se formou aqui no Porto. Até editamos uma revista de nome "Artemísia". Isso deu-me alguma prática para observar a qualidade da solidariedade feminina. De qualquer forma só lhe temos a agradecer este livro e o muito trabalho mas certamente muito prazer que lhe deu a escrever. Receba um afectuoso abraço com muita consideração e reconhecimento.


         Inês Lourenço



 NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA


 INÊS LOURENÇO nasceu no Porto e tem publicado desde 1980 mais de uma dezena de títulos de poesia, colaborado em inúmeros livros colectivos e tem sido seleccionada para um considerável número de antologias em Portugal e noutros países. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela FLUP (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Poemas seus foram incluídos em publicações portuguesas de referência, como: Jornal de Letras Artes e Ideias; Revista Relâmpago; Colóquio/Letras; Jornal Público; Semanário Expresso; Inimigo Rumor; Telhados de Vidro; Águas Furtadas; Cão Celeste; etc. Colaborou, igualmente, em publicações de poesia do Brasil, Espanha, França, Itália, Áustria, México, Marrocos e Roménia, com poemas que foram traduzidos nas respectivas línguas. Alguns títulos da obra poética: Os Solistas, 1994. Um Quarto com Cidades ao Fundo, 2000. Logros Consentidos, 2005. A Disfunção Lírica, 2007. Coisas que nunca, 2010. Câmara Escura, 2012. Ephemeras, 2012. O Segundo Olhar, 2015. O Jogo das Comparações, 2016. Fundou e editou durante cerca de doze anos (1987-1999) os Cadernos de poesia – Hífen, com 13 números publicados, na maioria temáticos, onde colaboraram com textos inéditos, grande parte dos poetas portugueses da época, (António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Fiama H. Pais Brandão, Adília Lopes, Al Berto, Luís Miguel Nava, Natália Correia, etc, e diversos poetas de outras línguas em tradução de poetas portugueses como Paul Celan, Sylvia Plath, Jorge Luís Borges, Thom Gunn, Ezra Pound, Ingeborg Bachamann, etc). A sua obra tem sido objecto de recensões críticas por parte de poetas, críticos e ensaístas, tais como: António Guerreiro, Manuel de Freitas, Fernando Guimarães, Maria Alzira Seixo, António Carlos Cortez, Diogo Vaz Pinto, Hugo Pinto dos Santos, Valter Hugo Mãe, José Mário Silva, Pedro Sena-Lino, etc. Foi júri de diversos prémios de poesia, entre eles o de Vasco Graça Moura e de Eugénio de Andrade. É sócia da APE, do Pen Clube e da SPA.