19/08/2017

A Mulher que venceu Don Juan

Simion Doru Cristea

Se à partida Don Juan é de descendência espanhola, a mulher que venceu Don Juan é, indubitavelmente, portuguesa e ela, por sua vez, reúne os nomes de todas as mulheres. As personagens femininas que exemplificam no romance esta qualidade constituem tão só um enquadramento diegético.
Teresa Martins Marques
A capa deste livro (editora Âncora, 2013) concebida por Sofia Travassos Diogo, utilizando um pormenor da célebre pintura de Gustav KlimtO beijo, sublinha o valor afetivo da relação interiorizada pela amada de olhos fechados para absorver o prazer mais além do toque físico dos corpos, numa sedimentação de memórias e aberturas física, emocional e mental, envolvendo o amante no seu ser para o dominar com o braço pousado sobre os seus ombros. Dos três tamanhos diferentes de letras do título da capa destaca-se à primeira vista: A mulher Don Juan e numa segunda leitura o título inteiro: A mulher que venceu Don Juan. As duas leituras são justificadas pelo romance que promove a postura feminina de Don Juan, não apenas na personagem explícita de Joana “pouco a pouco a Joana transformava-se em Doña Juana” (p. 73), mas em todas as personagens femininas. Todo o romance se afirma como uma ode dedicada à mulher, deusa e sacrifício do Amor.
Os conceitos de Don Juan e de Mulher neste romance descritivo e interpretativo não constituem um par antonímico, mas uma osmose. O valor conceptual projeta-os numa dimensão virtual, intangível, num desenrolar do amor como desejo, aspiração, fuga, encontro do desencontro, relação na qual a mulher tem a vantagem de dominar a situação uma vez que Don Juan, concentrado no seu desejo de conquista da mulher, abstrai-se da realidade imediata, marcando fisicamente uma ausência, enquanto a mulher, detentora do mistério da vida, tem uma ligação ontológica com o imanente, conferindo-lhe todas as vantagens de conquista do indivíduo. Apenas ele próprio se vê e se considera Don Juan. Por outro lado, uma mulher apaixonada identifica-se no seu íntimo com aquele que ama, conduzindo-o afetivamente. No terceiro grau desta hipóstase ficcional dominadora de Don Juan assumida pela mulher, temos a sabedoria, a razão e a previsão do amor-crime colocado numa cadeia repetitiva e, como tal, o comportamento daquele, que uma vez cometendo um crime vai voltar a fazê-lo em várias situações com várias vítimas, é vigiado. Configura-se deste modo um nível superior da condição de Don Juan feminino oferecido pela própria experiência de vida à Dr.ª Lúcia que abriu, também ela, a luta contra a aterradora hidra que foi desde sempre a violência da parte do fisicamente mais forte e intelectualmente fraco.
As personagens masculinas deste romance, embora aspirando-o, não conseguem assumir a condição de Don Juan, personagem tornada objeto de reflexão filosófica e interpretação literária com ricas referências bibliográficas em torno de O Diário do Sedutor do “Dinamarquês Universal” (p. 229) Sørel Kierkegaard, “escolhido como tema-base da tese de doutoramentopela sua [Manuela] imensa curiosidade sobre comportamentos humanos” (p. 116).
O mais perigoso, o Dr. Amaro Fróis, “cirurgião plástico muito conhecido” (p. 168), relaciona-se com a violência, não com o amor e não passa de um violador, como o apresenta sinteticamente Lúcia ao comissário do Porto Paulo Ventura: “O Amaro é um violador inveterado. Violou-me a mim, à Sara, ao Manaças e sei lá se também à Joana, que bem pode ser filha dele. O homem é um refinado psicopata” (p. 284). No seu refinamento erótico evidencia também atitudes homossexuais como no passado para com o Rui, o jovem namorado de Lúcia que morreu num acidente de carro por ele provocado, atitudes esclarecidas pela violação de Manaças e na confissão da Sara: “Ele deu-me a entender, por meias palavras, que sabia da minha ligação com o Alberto e chegou mesmo a insinuar que não se importaria, se eu lhe contasse pormenores de cama. Agora faz todo o sentido. O Amaro simularia o sexo mental com o Alberto através de mim, se eu tivesse alinhado a contar” (p. 290).
Da geração mais jovem, Carlos Manaças “um sujeito estranho, de Avintes, professor até há pouco tempo em Lisboa” (p. 273) como é apresentado no seu relato policial pelo comissário Paulo Ventura, assume o papel de confessor traidor dos seus amigos, entre os quais o Luís, superficial em tudo e, como tal, assume a imagem de dandy na Faculdade de Letras de Lisboa e nas suas relações amorosas e, porque nunca ia ao fundo das coisas, mudou várias vezes o tema da tese de doutoramento, aliás nunca terminada. Como vítima, é violado pelo seu próprio pai, Dr. Amaro Fróis, tendo sido também testemunha ocular da sua morte baleado pela sua mãe, Gertrudes (p. 312). Sendo o principal suspeito deste crime, Manaças foge para o Brasil donde passa para a Argentina onde consegue, finalmente, encontrar a sua vocação de animador, cantor e dançarino de tango em Buenos Aires, conhecido como Don Carlito (p. 317).
Luís apresenta-se como um intelectual que exercita a sua arte de fascínio intelectual ex catedra sobre as suas alunas, uma delas a sua própria mulher, Joana, que há alguns meses o deixara sozinho numa vida insípida e monótona. Preso na sua paixão por Joana, vive desesperadamente a traição do amor da sua vida, a sua alma gémea, mete-se nos copos com os amigos para esquecer, sendo um deles o mais jovem Carlos Manaças (cf. Capítulo In vino veritas, pp. 47–54). O raio de luz entra na sua casa com a sua empregada doméstica Esmeralda Cardoso, identidade emprestada por Sara Fróis (p. 40). Eles vão encher e completar as suas vidas de uma forma mútua. Tiveram sorte que a Dr.ª Lúcia tenha planejado entrelaçar as suas vidas.
Francisco, namorado de Lúcia, é o seu verdadeiro colega de coração, uma presença masculina quente e protetora, um apoiante ativo das suas causas social e moral, uma sombra luminosa da qual uma mulher determinada como ela necessita neste mundo.
As histórias de vida de várias personalidades históricas referenciadas ao longo deste romance, e não sou poucas, relacionam-se com a condição do conquistador, caçador e vingativo, ou daquele que sofre condenado injustamente por causa do seu amor correspondido. Mencionamos o enredo histórico do conde Gregório Taumaturgo de Castelo Branco apresentado no romance de Fernando Campos O Prisioneiro da Torre Velha, sobre Dona Brázia de Vilhena, casada com o seu tio, Taumaturgo, um criminoso em série, que mata as suas esposas (pp. 107–111) e planeja igualmente a punição de Dom Francisco “condenado pela vingança do marido traído e pelos ciúmes do rei” [D. João IV] (p. 110), também amante da condessa Dona Mariana, a terceira esposa do Taumaturgo. Dom Francisco, o poeta apaixonado, perdeu todos os seus bens ficando preso dos 33 aos 45 anos (p. 111).
O lado inédito deste romance de 324 páginas estruturado em 34 capítulos é a anulação do limite entre a ficção e a realidade conhecida hoje pelos leitores. A autora oferece-nos uma sobreposição das personagens com pessoas reais referenciadas entre as quais se conta a própria autora (p. 154). Os nossos conhecidos e reconhecidos encontrados no romance, com os seus nomes, maneira de ser e estar, seus horizontes culturais e afetivos preenchem de vida os lugares e instituições como APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), a Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa manuelina, Cidade Universitária, Alfama, Jardim Constantino, Saldanha, Avenida da Liberdade, Chiado, Tavira com as suas duas Associações ativas e maior renome no estrangeiro do que em Portugal: a Associação Internacional de Paremiologia e o Núcleo de Amigos Fotógrafos do Algarve (cf. o capítulo Na Veneza Algarvia, pp. 147–162). De norte a sul todo o Portugal está presente neste romance, como um pódio histórico-cultural digno para a mulher que saiu do mito e se incorporou na atual intelectual que vence Don Juan, sem sair do espaço cultural ibérico onde Portugal está carregado de memórias dos atos históricos sedimentados durante séculos. As personagens vivenciam sonhos materializados numa história mantida viva pelos intelectuais deste país que atualizam o passado e também, por sua vez, se sedimentam na história, ficando vivos no imaginário inalterável do romance. A entrada das pessoas ainda em vida no romance anula o valor estático da eternidade expressa nas lápides dos túmulos e por isso, para além de qualquer amizade, têm que mostrar os seus reconhecimentos para continuarem a presenciar no romance a sua vida normal afetiva e intelectual, longe de qualquer exemplaridade. Como intelectuais são os intérpretes que chamam à vida tantas e tantas histórias e obras e, falando sobre a genialidade dos outros, revelam o seu próprio valor.
Consideramos não muito certa a questão: “Quem é a mulher que venceu Don Juan?” Porque neste romance cada mulher conhecedora deste mito vence Don Juan, inclusivamente a Filomena que “tinha aparecido morta com um golpe fundo na garganta e o bandido foi entregar-se todo lampeiro e cumpridor das leis” (p. 45). Esta interpretação contravém à intenção da autora de criar um romance na linha de arte com tendência, para promover e apoiar a luta contra a violência doméstica e de qualquer outro tipo. Não seguimos igualmente a linha do complexo de Estocolmo, que defende o agressor culpando a vítima. Como Filomena venceu Don Juan uma vez que o bandido a matou? Não suportando mais a sua vida doméstica, o tratamento inumano, fugiu de casa e pediu ajuda à APAV, viveu com outras colegas do mesmo sofrimento na casa de férias da Dr.ª Lúcia no Monte da Caparica, lugar de onde desapareceu em circunstâncias desconhecidas que levantam várias suposições, o certo é que a caça foi ao reencontro com o caçador. Ela venceu Don Juan, o homem que amava, sempre presente no seu coração, confessando ao agressor o seu grande amor pela vida e pelo homem dos seus sonhos que sempre irá amar, a verdadeira imagem do seu amante, a única que lhe deu razão para viver. Filomena venceu Don Juan porque o bandido entendeu que nunca iria chegar à nobreza da sua pobre mulher, ele não é e nunca vai ser Don Juan e por isso a besta ofereceu-lhe a oportunidade de ela própria vencer Don Juan através da morte, abraçando-o eternamente, como no quadro O Beijo de Gustav Klimt.
A personagem principal, Sara Fróis, a princesa à procura do seu reinado, vence duas vezes o Don Juan à sua maneira: através do coração de criança e o horizonte juvenil de virgem, Sara vence Don Juan que era Amaro, seu marido com dupla personalidade a quem foi entregue pelos seus pais e, como Esmeralda, conquista com o seu coração e horizonte de mulher delicada e culta o académico Luís, comentador imaginativo de Don Juan. Assistimos à redação do diário de Sara escrito num estado místico de alma, no qual entrelaça a alegria, a inocência pueril e o exuberante desejo juvenil com a sua sede de conhecimentos numa formação académica interdita na juventude pelo seu marido, a sua sensibilidade, cultura e horizonte de autodidata que falava fluentemente várias línguas, escrevia chicoteada pelas lembranças de tantas traições, da parte dos seus pais, do marido e criadas, restando-lhe apenas fieis o seu motorista Joaquim que lhe salvou a vida após o aborto provocado por Amaro (pp. 16–18), o comissário Paulo que investigou o seu caso de violência doméstica, a Dr.ª Lúcia e todos aqueles que se solidarizaram com o seu sofrimento. Abraça-a inconscientemente o calor vindo da parte de Luís, o homem que mais respeitava, vivendo juntos o desejo da união e amor sempre sonhados. Encontra alívio e calma na sua escrita oferecida ao seu único leitor-confessor, Luís, estratagema libertador do seu íntimo,
A Dr.ª Lúcia vence os seus Don Juans e o número de várias configurações afetivas e imaginativas de Don Juan das suas pacientes protegidas pela APAV. Domina e interpreta com a sua sobrinha Manuela o horizonte cultural desta constante intelectual e paradigma humano, incentivando Manuela a estudar esta face da realidade humana.
Indo mais além das referências comparatistas literárias com Werther “Werther é interioridade, Don Juan é exterioridade, Werther é haute couture, Don Juan é pronto-a-despir, Werther é gourmet, Don Juan é fast food” (p. 73), ou a sua representação decrépita na qual “a velhice é o verdadeiro castigo de Don Juan quando as armas da sedução começam a falhar” (pp. 233–234) com referência à peça La mort qui fait le trottoir de Montherlant, nas conversas com a sua tia Dr.ª Lúcia sobre a condição do sedutor, a vestal Manuela vence Don Juan especializando-se no estudo deste tema, evoca o lado mítico resumido por Kierkegaard em três palavras: “fruição, dúvida e desespero” e “aquelas três palavras correspondem a três figuras: Don Juan, Fausto e Ahasverus” (p.144) no sentido que “estas três figuras não constituem somente tipos históricos, são tipos humanos que se encontram igualmente nos dias de hoje” (ibidem). Liga Don Juan à condição do Sísifo: “É assim que vejo as conquistas de Don Juan. Uma auto condenação a subir e deixar cair a pedra. Continuamente.” (ibidem, p. 238). Abordando a complexidade da sedução, a mesma pesquisadora relaciona-a com o “complexo de Édipo”: “No donjuanismo existe frequentemente um complexo de Édipo, não resolvido. A volubilidade indicia imaturidade afetiva, medo de assumir compromissos próprios da adultícia, somada à ausência de culpa e de remorso” (p. 233). Não faltam as referências à obra de Rougement, Les Mythes de L’Amour onde se insiste no “déficit identitário de Don Juan” (p. 234), de onde surge o seu relacionamento com o mito de Narciso: “Não sente afeto por ninguém a não ser por si mesmo. Sendo que o afeto pelo outro define a identidade, Don Juan-Narciso é uma máscara ambulante, um lugar vazio” (p. 234), este aspeto visa a atividade intelectual que abstrai a pessoa, projetando-a no mundo interior da leitura, imaginação, reflexão, e por isso Don Juan é o intelectual que exige da sua parte e dos outros o absoluto, a perfeição, desejo que alimenta o seu contínuo descontentamento. Não falta a referência à metamorfose que transforma o amador na pessoa amada: “A ninfa a que se alude é Cénis, transformada por Posídon em Ceneu, o homem por quem ela se tinha apaixonado. Este desejo expresso pelo sedutor de transformar a amadora no amado, em processo fusional de assimilação e de transferência do género, é bem significativo do recôndito ninguém fuma um cigarro duas vezes” (p. 238). Deste modo, fecha-se o círculo, Don Juan ultrapassando a limitação do género como esclarece Lúcia: “quem disse que o donjuanismo é exclusivo dos homens? Não, Luís, somos todos iguais, homens ou mulheres, para o bem e para o mal” (pp. 73–74).
A leitura deste romance cativa, informa e educa-nos, oferecendo-nos referências bibliográficas de mais de 45 títulos, sem esquecer várias edições originais e traduções da obra de Sørel Kierkegaard; no seu todo, o romance constitui-se como uma pleitearia argumentada e bem imaginada para a causa nobre de provar que as mulheres são Don Juan e incentivando-as a serem sempre aquelas que o vencem, nunca desistindo de lutar na defesa dos seus valores e dignidade, promovendo a igualdade do ser humano, bem como cultivando a nobreza do ser. Como numa verdadeira digressão pelo país, são referenciados nomes de restaurantes e cafés que podemos hoje encontrar e frequentar para nossa grande satisfação como: o Restaurante Olivier da Rua do Alecrim em Lisboa, (p. 15), Restaurante Cave Real, na Avenida 5 de Outubro, (p. 65), O Casarão de Tavira (p. 152), o Café Venezade Tavira (p. 161), o Solar dos Presuntos, (p. 173), o Serra da Estrela no Atrium Saldanha em Lisboa, (p. 173), o Café Majestic do Porto (p. 206) e tantos outros, cada um com a sua caraterística ambiental e paladares próprios, inesquecíveis.
Terminada a leitura, ficamos convencidos que a própria autora Teresa Martins Marques venceu Don Juan da melhor forma possível, como testemunham as personagens que decifraram a mensagem e perceberam perfeitamente o que têm de fazer, e nós todos, sendo para muitos e muitas um incentivo de mudança de vida.
O esplendor da mulher portuguesa ou A Mulher que venceu Don Juan, romance de Teresa Martins Marques, Âncora Editora, 2013, 326 p, formato 150 × 230 mm
Simion Doru Cristea
Se à partida Don Juan é de descendência espanhola, a mulher que venceu Don Juan é, indubitavelmente, portuguesa e ela, por sua vez, reúne os nomes de todas as mulheres. As personagens femininas que exemplificam no romance esta qualidade constituem tão só um enquadramento diegético.
A capa deste livro concebida por Sofia Travassos Diogo, utilizando um pormenor da célebre pintura de Gustav Klimt O beijo, sublinha o valor afetivo da relação interiorizada pela amada de olhos fechados para absorver o prazer mais além do toque físico dos corpos, numa sedimentação de memórias e aberturas física, emocional e mental, envolvendo o amante no seu ser para o dominar com o braço pousado sobre os seus ombros. Dos três tamanhos diferentes de letras do título da capa destaca-se à primeira vista: A mulher Don Juan e numa segunda leitura o título inteiro: A mulher que venceu Don Juan. As duas leituras são justificadas pelo romance que promove a postura feminina de Don Juan, não apenas na personagem explícita de Joana “pouco a pouco a Joana transformava-se em Doña Juana” (p. 73), mas em todas as personagens femininas. Todo o romance se afirma como uma ode dedicada à mulher, deusa e sacrifício do Amor.
Os conceitos de Don Juan e de Mulher neste romance descritivo e interpretativo não constituem um par antonímico, mas uma osmose. O valor conceptual projeta-os numa dimensão virtual, intangível, num desenrolar do amor como desejo, aspiração, fuga, encontro do desencontro, relação na qual a mulher tem a vantagem de dominar a situação uma vez que Don Juan, concentrado no seu desejo de conquista da mulher, abstrai-se da realidade imediata, marcando fisicamente uma ausência, enquanto a mulher, detentora do mistério da vida, tem uma ligação ontológica com o imanente, conferindo-lhe todas as vantagens de conquista do indivíduo. Apenas ele próprio se vê e se considera Don Juan. Por outro lado, uma mulher apaixonada identifica-se no seu íntimo com aquele que ama, conduzindo-o afetivamente. No terceiro grau desta hipóstase ficcional dominadora de Don Juan assumida pela mulher, temos a sabedoria, a razão e a previsão do amor-crime colocado numa cadeia repetitiva e, como tal, o comportamento daquele, que uma vez cometendo um crime vai voltar a fazê-lo em várias situações com várias vítimas, é vigiado. Configura-se deste modo um nível superior da condição de Don Juan feminino oferecido pela própria experiência de vida à Dr.ª Lúcia que abriu, também ela, a luta contra a aterradora hidra que foi desde sempre a violência da parte do fisicamente mais forte e intelectualmente fraco.
As personagens masculinas deste romance, embora aspirando-o, não conseguem assumir a condição de Don Juan, personagem tornada objeto de reflexão filosófica e interpretação literária com ricas referências bibliográficas em torno de O Diário do Sedutor do “Dinamarquês Universal” (p. 229) Sørel Kierkegaard, “escolhido como tema-base da tese de doutoramentopela sua [Manuela] imensa curiosidade sobre comportamentos humanos” (p. 116).
O mais perigoso, o Dr. Amaro Fróis, “cirurgião plástico muito conhecido” (p. 168), relaciona-se com a violência, não com o amor e não passa de um violador, como o apresenta sinteticamente Lúcia ao comissário do Porto Paulo Ventura: “O Amaro é um violador inveterado. Violou-me a mim, à Sara, ao Manaças e sei lá se também à Joana, que bem pode ser filha dele. O homem é um refinado psicopata” (p. 284). No seu refinamento erótico evidencia também atitudes homossexuais como no passado para com o Rui, o jovem namorado de Lúcia que morreu num acidente de carro por ele provocado, atitudes esclarecidas pela violação de Manaças e na confissão da Sara: “Ele deu-me a entender, por meias palavras, que sabia da minha ligação com o Alberto e chegou mesmo a insinuar que não se importaria, se eu lhe contasse pormenores de cama. Agora faz todo o sentido. O Amaro simularia o sexo mental com o Alberto através de mim, se eu tivesse alinhado a contar” (p. 290).
Da geração mais jovem, Carlos Manaças “um sujeito estranho, de Avintes, professor até há pouco tempo em Lisboa” (p. 273) como é apresentado no seu relato policial pelo comissário Paulo Ventura, assume o papel de confessor traidor dos seus amigos, entre os quais o Luís, superficial em tudo e, como tal, assume a imagem de dandy na Faculdade de Letras de Lisboa e nas suas relações amorosas e, porque nunca ia ao fundo das coisas, mudou várias vezes o tema da tese de doutoramento, aliás nunca terminada. Como vítima, é violado pelo seu próprio pai, Dr. Amaro Fróis, tendo sido também testemunha ocular da sua morte baleado pela sua mãe, Gertrudes (p. 312). Sendo o principal suspeito deste crime, Manaças foge para o Brasil donde passa para a Argentina onde consegue, finalmente, encontrar a sua vocação de animador, cantor e dançarino de tango em Buenos Aires, conhecido como Don Carlito (p. 317).
Luís apresenta-se como um intelectual que exercita a sua arte de fascínio intelectual ex catedra sobre as suas alunas, uma delas a sua própria mulher, Joana, que há alguns meses o deixara sozinho numa vida insípida e monótona. Preso na sua paixão por Joana, vive desesperadamente a traição do amor da sua vida, a sua alma gémea, mete-se nos copos com os amigos para esquecer, sendo um deles o mais jovem Carlos Manaças (cf. Capítulo In vino veritas, pp. 47–54). O raio de luz entra na sua casa com a sua empregada doméstica Esmeralda Cardoso, identidade emprestada por Sara Fróis (p. 40). Eles vão encher e completar as suas vidas de uma forma mútua. Tiveram sorte que a Dr.ª Lúcia tenha planejado entrelaçar as suas vidas.
Francisco, namorado de Lúcia, é o seu verdadeiro colega de coração, uma presença masculina quente e protetora, um apoiante ativo das suas causas social e moral, uma sombra luminosa da qual uma mulher determinada como ela necessita neste mundo.
As histórias de vida de várias personalidades históricas referenciadas ao longo deste romance, e não sou poucas, relacionam-se com a condição do conquistador, caçador e vingativo, ou daquele que sofre condenado injustamente por causa do seu amor correspondido. Mencionamos o enredo histórico do conde Gregório Taumaturgo de Castelo Branco apresentado no romance de Fernando Campos O Prisioneiro da Torre Velha, sobre Dona Brázia de Vilhena, casada com o seu tio, Taumaturgo, um criminoso em série, que mata as suas esposas (pp. 107–111) e planeja igualmente a punição de Dom Francisco “condenado pela vingança do marido traído e pelos ciúmes do rei” [D. João IV] (p. 110), também amante da condessa Dona Mariana, a terceira esposa do Taumaturgo. Dom Francisco, o poeta apaixonado, perdeu todos os seus bens ficando preso dos 33 aos 45 anos (p. 111).
O lado inédito deste romance de 324 páginas estruturado em 34 capítulos é a anulação do limite entre a ficção e a realidade conhecida hoje pelos leitores. A autora oferece-nos uma sobreposição das personagens com pessoas reais referenciadas entre as quais se conta a própria autora (p. 154). Os nossos conhecidos e reconhecidos encontrados no romance, com os seus nomes, maneira de ser e estar, seus horizontes culturais e afetivos preenchem de vida os lugares e instituições como APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), a Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa manuelina, Cidade Universitária, Alfama, Jardim Constantino, Saldanha, Avenida da Liberdade, Chiado, Tavira com as suas duas Associações ativas e maior renome no estrangeiro do que em Portugal: a Associação Internacional de Paremiologia e o Núcleo de Amigos Fotógrafos do Algarve (cf. o capítulo Na Veneza Algarvia, pp. 147–162). De norte a sul todo o Portugal está presente neste romance, como um pódio histórico-cultural digno para a mulher que saiu do mito e se incorporou na atual intelectual que vence Don Juan, sem sair do espaço cultural ibérico onde Portugal está carregado de memórias dos atos históricos sedimentados durante séculos. As personagens vivenciam sonhos materializados numa história mantida viva pelos intelectuais deste país que atualizam o passado e também, por sua vez, se sedimentam na história, ficando vivos no imaginário inalterável do romance. A entrada das pessoas ainda em vida no romance anula o valor estático da eternidade expressa nas lápides dos túmulos e por isso, para além de qualquer amizade, têm que mostrar os seus reconhecimentos para continuarem a presenciar no romance a sua vida normal afetiva e intelectual, longe de qualquer exemplaridade. Como intelectuais são os intérpretes que chamam à vida tantas e tantas histórias e obras e, falando sobre a genialidade dos outros, revelam o seu próprio valor.
Consideramos não muito certa a questão: “Quem é a mulher que venceu Don Juan?” Porque neste romance cada mulher conhecedora deste mito vence Don Juan, inclusivamente a Filomena que “tinha aparecido morta com um golpe fundo na garganta e o bandido foi entregar-se todo lampeiro e cumpridor das leis” (p. 45). Esta interpretação contravém à intenção da autora de criar um romance na linha de arte com tendência, para promover e apoiar a luta contra a violência doméstica e de qualquer outro tipo. Não seguimos igualmente a linha do complexo de Estocolmo, que defende o agressor culpando a vítima. Como Filomena venceu Don Juan uma vez que o bandido a matou? Não suportando mais a sua vida doméstica, o tratamento inumano, fugiu de casa e pediu ajuda à APAV, viveu com outras colegas do mesmo sofrimento na casa de férias da Dr.ª Lúcia no Monte da Caparica, lugar de onde desapareceu em circunstâncias desconhecidas que levantam várias suposições, o certo é que a caça foi ao reencontro com o caçador. Ela venceu Don Juan, o homem que amava, sempre presente no seu coração, confessando ao agressor o seu grande amor pela vida e pelo homem dos seus sonhos que sempre irá amar, a verdadeira imagem do seu amante, a única que lhe deu razão para viver. Filomena venceu Don Juan porque o bandido entendeu que nunca iria chegar à nobreza da sua pobre mulher, ele não é e nunca vai ser Don Juan e por isso a besta ofereceu-lhe a oportunidade de ela própria vencer Don Juan através da morte, abraçando-o eternamente, como no quadro O Beijo de Gustav Klimt.
A personagem principal, Sara Fróis, a princesa à procura do seu reinado, vence duas vezes o Don Juan à sua maneira: através do coração de criança e o horizonte juvenil de virgem, Sara vence Don Juan que era Amaro, seu marido com dupla personalidade a quem foi entregue pelos seus pais e, como Esmeralda, conquista com o seu coração e horizonte de mulher delicada e culta o académico Luís, comentador imaginativo de Don Juan. Assistimos à redação do diário de Sara escrito num estado místico de alma, no qual entrelaça a alegria, a inocência pueril e o exuberante desejo juvenil com a sua sede de conhecimentos numa formação académica interdita na juventude pelo seu marido, a sua sensibilidade, cultura e horizonte de autodidata que falava fluentemente várias línguas, escrevia chicoteada pelas lembranças de tantas traições, da parte dos seus pais, do marido e criadas, restando-lhe apenas fieis o seu motorista Joaquim que lhe salvou a vida após o aborto provocado por Amaro (pp. 16–18), o comissário Paulo que investigou o seu caso de violência doméstica, a Dr.ª Lúcia e todos aqueles que se solidarizaram com o seu sofrimento. Abraça-a inconscientemente o calor vindo da parte de Luís, o homem que mais respeitava, vivendo juntos o desejo da união e amor sempre sonhados. Encontra alívio e calma na sua escrita oferecida ao seu único leitor-confessor, Luís, estratagema libertador do seu íntimo,
A Dr.ª Lúcia vence os seus Don Juans e o número de várias configurações afetivas e imaginativas de Don Juan das suas pacientes protegidas pela APAV. Domina e interpreta com a sua sobrinha Manuela o horizonte cultural desta constante intelectual e paradigma humano, incentivando Manuela a estudar esta face da realidade humana.
Indo mais além das referências comparatistas literárias com Werther “Werther é interioridade, Don Juan é exterioridade, Werther é haute couture, Don Juan é pronto-a-despir, Werther é gourmet, Don Juan é fast food” (p. 73), ou a sua representação decrépita na qual “a velhice é o verdadeiro castigo de Don Juan quando as armas da sedução começam a falhar” (pp. 233–234) com referência à peça La mort qui fait le trottoir de Montherlant, nas conversas com a sua tia Dr.ª Lúcia sobre a condição do sedutor, a vestal Manuela vence Don Juan especializando-se no estudo deste tema, evoca o lado mítico resumido por Kierkegaard em três palavras: “fruição, dúvida e desespero” e “aquelas três palavras correspondem a três figuras: Don Juan, Fausto e Ahasverus” (p.144) no sentido que “estas três figuras não constituem somente tipos históricos, são tipos humanos que se encontram igualmente nos dias de hoje” (ibidem). Liga Don Juan à condição do Sísifo: “É assim que vejo as conquistas de Don Juan. Uma auto condenação a subir e deixar cair a pedra. Continuamente.” (ibidem, p. 238). Abordando a complexidade da sedução, a mesma pesquisadora relaciona-a com o “complexo de Édipo”: “No donjuanismo existe frequentemente um complexo de Édipo, não resolvido. A volubilidade indicia imaturidade afetiva, medo de assumir compromissos próprios da adultícia, somada à ausência de culpa e de remorso” (p. 233). Não faltam as referências à obra de Rougement, Les Mythes de L’Amour onde se insiste no “déficit identitário de Don Juan” (p. 234), de onde surge o seu relacionamento com o mito de Narciso: “Não sente afeto por ninguém a não ser por si mesmo. Sendo que o afeto pelo outro define a identidade, Don Juan-Narciso é uma máscara ambulante, um lugar vazio” (p. 234), este aspeto visa a atividade intelectual que abstrai a pessoa, projetando-a no mundo interior da leitura, imaginação, reflexão, e por isso Don Juan é o intelectual que exige da sua parte e dos outros o absoluto, a perfeição, desejo que alimenta o seu contínuo descontentamento. Não falta a referência à metamorfose que transforma o amador na pessoa amada: “A ninfa a que se alude é Cénis, transformada por Posídon em Ceneu, o homem por quem ela se tinha apaixonado. Este desejo expresso pelo sedutor de transformar a amadora no amado, em processo fusional de assimilação e de transferência do género, é bem significativo do recôndito ninguém fuma um cigarro duas vezes” (p. 238). Deste modo, fecha-se o círculo, Don Juan ultrapassando a limitação do género como esclarece Lúcia: “quem disse que o donjuanismo é exclusivo dos homens? Não, Luís, somos todos iguais, homens ou mulheres, para o bem e para o mal” (pp. 73–74).
A leitura deste romance cativa, informa e educa-nos, oferecendo-nos referências bibliográficas de mais de 45 títulos, sem esquecer várias edições originais e traduções da obra de Sørel Kierkegaard; no seu todo, o romance constitui-se como uma pleitearia argumentada e bem imaginada para a causa nobre de provar que as mulheres são Don Juan e incentivando-as a serem sempre aquelas que o vencem, nunca desistindo de lutar na defesa dos seus valores e dignidade, promovendo a igualdade do ser humano, bem como cultivando a nobreza do ser. Como numa verdadeira digressão pelo país, são referenciados nomes de restaurantes e cafés que podemos hoje encontrar e frequentar para nossa grande satisfação como: o Restaurante Olivier da Rua do Alecrim em Lisboa, (p. 15), Restaurante Cave Real, na Avenida 5 de Outubro, (p. 65), O Casarão de Tavira (p. 152), o Café Venezade Tavira (p. 161), o Solar dos Presuntos, (p. 173), o Serra da Estrela no Atrium Saldanha em Lisboa, (p. 173), o Café Majestic do Porto (p. 206) e tantos outros, cada um com a sua caraterística ambiental e paladares próprios, inesquecíveis.
Terminada a leitura, ficamos convencidos que a própria autora Teresa Martins Marques venceu Don Juan da melhor forma possível, como testemunham as personagens que decifraram a mensagem e perceberam perfeitamente o que têm de fazer, e nós todos, sendo para muitos e muitas um incentivo de mudança de vida.


Simion Doru Cristea nasceu em Bistrița, Roménia a 15.04.1965. Licenciado pela Faculdade de Filologia da Universidade Babeș-Bolyai de Cluj-Napoca,  Roménia, Curso de cinematografia, Cluj-Napoca, Alta Escola de Pós-Graduação de Filologia e História na mesma Universidade, o primeiro doutoramento em Filologia (Linguística Geral) Faculdade de Letras da Universidade “Babeș-Bolyai” de Cluj-Napoca (2001), o segundo doutoramento em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2011). Membro do CLEPUL-FLUL, da Associação Internacional de Paremiologia AIP/IAP, da APT, professor no Instituto Cultural Romeno de Lisboa. As áreas da sua atividade cultural: folclore, linguística, literatura, artes, paremiologia, religião, história, psicologia da educação e filosofia. Participou em vários Colóquios Internacionais em Portugal e no estrangeiro. Publicou diferentes artigos em revistas, livros coletivos e livros: Manifestul elevului de nota 10 [O manifesto do aluno de nota 20], Casa de Editură Dokia, 2001, Funcția symbolic-mitică în textul religios [A função simbólico-mítica no texto religioso], Cluj-Napoca, GEDO Publishing House, 2005; Navegando no mar que nos navega: abordagens à obra Mar me quer de Mia Couto Lisboa, 2005 (co-autor), O homem ser falante, Lisboa, Pearlbooks, 2013; Să trăiți, Domule Președinte, romance, Cluj-Napoca, Casa de Editură Dokia, 2014, traduzido para Português: Viva, Senhor Presidente, Lisboa, Fólio Exemplar, 2017. Traduziu com Maria João Coutinho para língua romena: Edward Zellem, Afgan Proverbs Illustrated in Romanian and Dari Persian. Proverbe afgane illustrate, Cultures Direct LLC of USA, 2013. [Provérbios afegãos ilustrados]. Padre António Vieira, Opere alese [Obras seletas], Vitório Káli, Tupáriz și Șerpii Cerului [Tupáriz e as Serpentes do Céu], Ernesto Rodrigues, O fericire perfectă  [Uma felicidade perfeita], Iași, Editora Timpul, 2017. Realizador de vários filmes, dois apresentados no FESTin Lisboa, Salvador da Bahía e Guiné Bissau: Sem anos de solidão, 2012, Fraternuras, 2014.


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