Psicanálise da Sedução numa Novela Exemplar de Teresa Martins Marques
Luiza Nóbrega
Entretanto, pelo menos no
que concerne à minha própria e primeira leitura, a vertente-raiz, o gênero
envolvente no qual os demais se entremeiam e encaixam, é o do conto de fadas
(no que, em sua estrutura maior, tem de parábola instrutiva, medida pedagógica
e práxis terapêutica). Não um qualquer fairy tale, porém, e sim algo mais
moderno, menos próximo de Andersen, mais próximo de um guia para a felicidade
possível, que tangencie de leve os aforismos de Schopenhauer e Montaigne; ou de
uma fábula do Italo Calvino ou Herman Hesse, com alguma sugestão do Cervantes
das Novelas Exemplares, do Decameron de Boccaccio; ou, ainda, e
mais propriamente, do português Júlio Dinis; tudo isso de mistura com o farto
material que nos é despejado, nos últimos anos, pelos media, seja nos jornais e
novelas da TV, seja na revista Caras e outras similares.
Ler um texto é inevitavelmente
perceber o seu intertexto, explicitado nas linhas ou sugerido nas entrelinhas;
e essa narrativa da Teresa Martins Marques, remetendo-nos explicitamente a certos
autores, sugere-nos em certos tópicos autores outros, cujo punho encaminharia a
narrativa para caminhos não confluentes, menos unívocos e mais inquietantes. Ocorrem-nos
então, a nós, leitores, ante certas fendas que se abrem (sobretudo nos
capítulos finais), sugestões de hipóteses que levariam a outras vertentes, mais
à Henry James, Poe, talvez Conan Doyle, ou até Lovecraft. Faz parte da leitura
a liberdade que o escritor deve dar aos leitores de extrair suas próprias
ilações. Porque as obras literárias, como as artísticas, resultam de escolhas
procedidas ante um amplo espectro de virtualidades, um labirinto de galerias no
qual se assombraram autores como Kafka; e, por outro lado, como dizia Rachel de
Queiroz, as personagens têm vida própria, e a certo ponto da narrativa tomam as
rédeas ao autor, obrigando-o a modificar sua intenção inicial; e (isso digo eu)
quando o autor não consente nessa sublevação, as personagens transferem a
aceitação do desvio para o campo do leitor, alimentando, assim, o que se
denomina teoria da recepção.
Não se trata aqui, porém,
de transformar e sim de compreender a narrativa em pauta, e o entendimento que
dela extraímos na leitura. E para tanto será preciso, primeiramente, desfazer o
equívoco de pensar que todos os contos de fadas sejam irrealidades que flutuem
no ar como balões. Se muitos deles destinam-se a alimentar os sonhos da criança
que permanece nos adultos, e outros pretendem formar adultos virtuosos,
incutindo nas crianças preceitos morais edificantes; os melhores desse gênero
têm, contudo, pés bem fincados no chão, e se parecem irreais é porque neles se
impõe outra lógica, pela qual o autor se propõe - com punho decidido e à sua
maneira - emendar, quase que por decreto, a desordem do mundo real, que ele
conhece tão bem quanto os autores de romances realistas. E esse é - ou assim me
parece – o propósito e motor da novela em causa.
Tais considerações visam
advertir o leitor que porventura seja tentado a identificar nessa novela o
propósito de obter, como cláusula primeira do pacto autor-leitor, a adesão
desse ao que seria uma manipulação do enredo e das personagens com a intenção maniqueísta
de instituir um círculo de virtuosos vencedores contra margens desviantes em
que soçobram destroçados delinqüentes, psicopatas e malfeitores, arrastados na
lama dos vícios com que se alimenta o high society, de hoje como de ontem. Do
meu ponto de vista, seria um equívoco ceder a essa tentação, porque não se
trata disso. Trata-se então de quê? Perguntará talvez o leitor que sofregamente
devorou as mais de cinco mil páginas das Songs
of Ice and Fire, em que o gênio narrador do George Martin, com sua equipe
de mulheres geniais, investe implacavelmente sobre nossas ilusões de retorno e
reencontro, ou de prêmio e recompensa aos justos e castigo punitivo aos vilões,
sem poupar nem sequer os espíritos tutelares das personagens, simbolicamente
figurados nos lobos que acompanham os fugitivos dispersos de Winterfell.
É inegável que na trama
desse enredo - desenrolado pela voz dum narrador dinâmico e versátil, onisciente
todo o tempo, mas aderindo às vozes que empresta às personagens – não há lugar
para a dúvida quanto à vitória dos justos sobre os malvados, unidos os
primeiros contra os segundos, num círculo de predominância feminina, em que
três figuras sobressaem, convergindo, sob o comando de uma psicanalista, na
campanha que leva ao desmonte de um Don Juan hipócrita, respeitável cirurgião à
superfície mundana e depravado facínora nos recessos do submundo.
É também inegável que não
se concede crédito às vozes daqueles que discordam das heroínas, nem à hipótese
de que por vezes, em certos casos, os vilões sejam o aviso aos puros de que não
são tão puros quanto pensam – o que em psicanálise se designa com o termo
retorno do recalcado. Ademais, poderia o leitor argumentar que no mundo real os
grandes facínoras, encaixados numa trama de corrupção inconsútil, não se
extirpam a valer, e muito menos por uma companhia de mulheres coadjuvadas por
alguns bons exemplares do sexo masculino, postos em lugares e funções de poder.
Antecipando-me ao possível
leitor cartesiano, fiz aqui o papel de advogada do diabo, não para nele me
deter, mas sim para avançar com fundamento um comentário em que deixe claro
porque vale a pena ler A Mulher que
Venceu Don Juan. E vale mesmo a pena quando se percebe qual a lógica, ou
melhor, a razão-de-ser do romance. Se lembrarmos que a literatura é uma
vertente desdobrada em cadeia de elos intertextuais que obedecem a uma
dialética, na qual se sucedem ideários estéticos opostos, gerando as diversas
correntes literárias, que sucessivamente reagem aos excessos da anterior; e se
pensarmos que - na deriva pós-naufrágio da arqueologia empreendida pelos gênios
escavadores do mal, na Literatura como na Filosofia e na Psicanálise - o nosso momento histórico-cultural-literário está
saturado de narrativas escabrosas, sufocantes e devastadoras, na exposição
implacável e desesperançada do cancro social, hoje exposto como algo banal nos
reality shows, ante os quais perde força de impacto até mesmo aquele filme em
que Pasolini traduziu para o cinema a Sodoma do criador de Justine e Juliette; se pensarmos mesmo a sério no momento histórico
que é o nosso, nesse mundo em que a lama tóxica arrasta casas, famílias,
cidades, num só ataque narcotizando as consciências e exterminando a esperança;
talvez seja não só compreensível mas também oportuna a escrita em que se
exemplifique a hipótese de resistência, que no caso se faz, não por uma Maria Moura,
com o seu bando, nos sertões brasileiros, mas por uma Lúcia e uma Sara, entre o
norte e o sul da Lusitânia. Do enredo mais não direi, para não me recair a
acusação de spoiler, como sucedeu quando sem querer revelei o trecho das Crônicas de Gelo e Fogo em que Tyrion
Lannister assassina o pai e quase fui banida do Facebook pelos preguiçosos
seguidores da série medíocre Game of
Thrones.
Direi, porém, das
qualidades da narrativa, em que sobressaem a linguagem corredia, o estilo culto
travestido em corriqueiro, as informações históricas, as remissões literárias,
o jeito de narrar como que conversando com pessoas próximas, a sabedoria de
vida expressa em algumas frases lapidares, por vezes citações de outros
autores. Conta-nos, por exemplo, a
história de D. Francisco Manuel de Melo de um ângulo particular, que mais se
memoriza porque nos entra pela via afetiva, tornando-nos mais próximo o
escritor e personagem histórico.
Essa narrativa, com o
poder de insinuar sensações e atmosferas através de imagens concretas, cativa-nos
e nos arrasta, num estilo a correr, nunca monótono, em que se percebe uma
autora dinâmica; provoca-nos com um léxico pujante, abundante e raro, em
numerosas expressões e um rico acervo de provérbios que dão substância ao
enredo e consistência à linguagem, ampliando assim o acervo dos leitores; diverte-nos
com ironia afiada, que nos sugere o estilo mordaz do Eça de Queiroz, e em que transparece
uma narradora com bagagem literária e pendor para a História, da vida pública e
da vida privada.
Entretanto, a qualidade
maior dessa novela, no meu entender, define-a como pragmática mais que
literária. A autora, com um talento de psicóloga que nos dá pistas para
compreensão dos meandros tortuosos do caráter e das interrelações humanas, compõe
uma narrativa que tem o poder de atuar positivamente sobre o leitor, e isso, a
meu ver, é relevante em dois sentidos: o editorial e o existencial. Sua
escrita, assim me parece, destina-se a cativar leitores e atrair amigos. E,
pensando de certo ângulo, de que adianta um livro se não desperta ressonâncias
no leitor? Talvez isso, aliás, esteja implícito no conceito do correlativo objetivo, formulado por
Eliot no seu ensaio sobre o Hamlet. Nesse tópico, evidencia-se a importância do
fator afetivo, como veículo e combustível da relação autor-leitor,
obra-leitura. Arte e Literatura, ao fim das contas, têm mais graça e fazem maior
e melhor sentido quando praticados como exercício de partilha e
intercomunicação encaixadas na vida, e portanto num intelecto que pulsa com
afeição - e agora creio que fui talvez ao ponto-chave teórico exposto por
Kristeva em seu La Révolution du Langage
Poétique.
Feitas as contas dos pros
e contras, se alguém disser que no mundo real as coisas não acabam assim, num
final feliz, com o joio lançado à Geena e o trigo sobranceiro ao sol, como quis
Mozart na Zauberflöte, a autora
poderá de pleno direito responder, como Duchamp (ceci n’est pas une pipe), que isso não é uma descrição do mundo
real e sim uma proposição do mundo que ela, autora, postula que seja, ou desejava
que fosse. Um mundo sereno, solidário, em que a virtude vigilante impedisse ou
corrigisse os vícios pérfidos provenientes e determinantes (o círculo vicioso) de
excessos desenfreados. Assim entendida, se essa não for uma escrita salvífica,
ou uma novela exemplar, que seja - consinta-se - um conto de fadas, mas no
sentido em que esse, sendo o fechamento conclusivo de algo que na realidade
permanece aberto e inconcluso, ganha valor e justifica-se enquanto parábola
terapêutica, profilática e pedagógica.
Luiza Nóbrega
Viana do Castelo, 22.06.2019
CURRICULUM
BREVE
LUIZA NÓBREGA
Poeta, ensaísta, ficcionista, pintora e pesquisadora.
Professora de Literatura e Artes aposentada pela UFRN.
Bacharelado em Direito (UFRN). Mestrado em Literatura
Brasileira (UnB). Doutorado em
Literatura Portuguesa (UFRJ/UnL). Posdoc em Literatura Portuguesa (Universidade
de Évora/UnL). Posdoc em Literatura Brasileira (Università degli Studi di
Perugia).
Estudou Artes Visuais com Ivan Serpa, no Centro de
Pesquisa de Artes de Ipanema (RJ). Participou nos grupos de estudos de
Psicologia Profunda com Nise da Silveira.
Dedicou-se à pesquisa, ao ensaio, à poesia e à ficção.
Especializou-se no estudo da poética d’ Os Lusíadas de Camões e da obra de Lêdo
Ivo.
Publicou livros, ensaios e poemas em diversos periódicos.
Produziu vídeos e performances poético-teatrais. Realizou diversas exposições.
Organizou colóquios e outros eventos acadêmicos. Participou em congressos e em
mesas de encontros literários.
Mora em Portugal.
Email: luiza14@gmail.com
Publicou: O
Canto Molhado. Metamorfose d’ Os Lusíadas: leitura do poema como poema
(Lisboa: Publidisa, 2008); Quero Ser o
que Passa: a poesia de Lêdo Ivo (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011); e No Reino da Água o Rei do Vinho: submersão
dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d’ Os Lusíadas (Natal: EDUFRN,
2013).
Sem comentários:
Enviar um comentário