03/01/2015

Casa Vermelha - «Pintura Manual. E. Canavarro e João F. Blane. Obra de Henrique Cardoso»

Seguiram a pé até à Rua Joaquim Bonifácio e pararam junto de um prédio vermelho, quase centenário, com varandins de pedra lioz e gradeamento verde-escuro. Na fachada, à direita da porta, um azulejo  com a data de construção − 1924. A vendedora abriu a pesada porta de ferro verde-escura. A entrada era espaçosa, com plantas ornamentais. Mas o que de imediato lhes chamou a atenção foi a inscrição num azulejo: «Pintura Manual. E. Canavarro e João F. Blane. Obra de Henrique Cardoso». A vendedora não perdeu a oportunidade de dizer que a escada do prédio fora recentemente  decorada e que os proprietários não tinham poupado esforços para preservar aquele prédio tradicional. 
– De facto – disse Sara − que olhava para os murais de azulejos representando o Palácio das Necessidades, a Sé e a Basílica da Estrela. Subiam devagar a escada encerada, de corrimão azul e branco a condizer com as portas antigas da mesma cor, e ficaram admirados com a exposição de quadros nas paredes, com motivos lisboetas, alternando com documentos encaixilhados relativos ao prédio: a biografia de Joaquim Bonifácio, que deu nome à rua, alvarás, licenças de construção, de habitação, escrituras do primitivo proprietário, intimações camarárias para manutenção, numa palavra, toda a história do edifício. No primeiro andar, o painel mostrava o Terreiro do Paço, no segundo, o Teatro Dona Maria, no terceiro, o Palácio de São Bento, no quarto, o Mosteiro dos Jerónimos, no quinto, a Praça de Touros do Campo Pequeno, a Ponte 25 de Abril, e, por último, o Aqueduto das Águas Livres. Era uma visita completa aos lugares canónicos da cidade.
Já no quinto andar, Sara reparou numa moldura que contava a história da quase morte do prédio – a tragédia ali ocorrida no dia 18 de Dezembro de 1987. O quadro relatava que de cima para baixo as varandas tinham começado a desabar e com elas arrastaram as cozinhas e as casas de jantar das traseiras. Tinha sido um verdadeiro pandemónio, relatado com todos os pormenores no Correio da Manhã.
– Quem vê o prédio, agora, não pode imaginar o passado.
– Pois não – remata Luís − e a vendedora concorda.
 A história deste prédio antigo duplicava a sua vida. Da derrocada  surgira uma nova estética. Dos escombros do passado reconstruía-se uma nova Sara.
Quando a vendedora lhes mostrou o apartamento do terceiro andar esquerdo já ela tinha decidido que gostaria de morar ali, mesmo que fosse apenas por pouco tempo, não sabendo ainda que rumo viria a ter a sua vida futura. O corredor comprido acabava na cozinha e depois numa varanda que dava para uma escada de ferro em caracol. Os quartos sucediam-se, como se a casa fosse um comboio e a ideia de viagem, de percurso com saída de emergência, fê-la identificar-se com o lugar. Em frente, um Templo Adventista. Na varanda, dois pombos debicavam migalhas. O sol de Julho entrava a jorros pelas janelas.
– O que acha, Luís?
– Deve estar-se bem aqui a ler ao fim da tarde – foi a resposta, com um sorriso.
– Ficamos com ela – e Luís sorriu, agradado deste plural.

In: "A Mulher que Venceu Don Juan" de Teresa Martins Marques

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