18/06/2014

FUNDO TEÓRICO DE «A MULHER QUE VENCEU DON JUAN»

A Mulher que Venceu Don Juan insere-se numa longuíssima série que tomou por tema o mito de Don Juan, cujo marco inicial se considera El Burlador de Sevilla Y Convidado de Piedra (1630), de Tirso de Molina. Segundo Jean Rousset, um dos grandes estudiosos do donjuanismo, Don Juan é e não é um mito. Em primeiro lugar os mitos não têm autor, conforme nos ensinou Lévy-Strauss. Os mitos vivem de uma longa história oral, ou seja na tradição anónima, ao contrário desta figura de que se conhece perfeitamente a paternidade literária. Todavia, a história de Don Juan rapidamente se autonomizou, relativamente ao texto fundador,  e tem vindo a passar de obra em obra, como se pertencesse a todos e a ninguém. Nesta característica reconhecemos um traço do mito, isto é o anonimato ligado à sua capacidade de persistir no inconsciente colectivo, mito sempre pronto a ressurgir e a sofrer alterações que lhe conferem plasticidade. [1] Sabemos bem do que falamos quando falamos de Don Juan, porém ele assume aspectos muito diversos  ao longo da História Literária.  Alguns dos nomes fundamentais que ficariam ligados a este mito serão: Don Juan ou Le Festin de Pierre (1665), de Molière; Don Juan Tenório, Osia il Dissoluto (1736) de Goldoni; Les Liaisons Dangereuses (1782) de Laclos; Don Giovanni (1787) de Mozart / Da Ponte; Don Juan (1819-1824) de Lord Byron; Don Juan Tenorio (1844) de Zorrilla; O poema de Baudelaire «Don Juan aux enfers» (Les Fleurs du Mal - 1857); Man and Superman (1903) de George Bernard Shaw; Les Exploits d’un Jeune Don Juan (1911) de Guillaume Apolinnaire; La dernière Nuit de Don Juan (1921) poema dramático de Edmond Rostand; Supplément à Don Juan (1831) de Colette; Le Mythe de Sisyphe (1942) de Camus; Don Juan ou la Mort Qui Fait le Trottoir (1958) de Henry de Montherlant; Terra Nostra (1975) de Carlos Fuentes.
Alguns, entre os portugueses: A Ondina do Lago (1864) de Teófilo Braga; A Morte de D. João (1874) de Guerra Junqueiro; O Último D. João de Guilherme de Azevedo (poesia-1874); o poema «A Última fase da vida de D. Juan» de Gomes Leal, inserto em Claridades do Sul (1875), O poema «D. João» (1906) de Silva Gaio; A Alma de D. João (1918) de Rui Chianca; poema «D. João» (1920) de João de Barros. A fábula trágica D. João e a Máscara (1924) de António Patrício (a obra-prima portuguesa dentro desta temática); a peça D. João Tenório (1920) de Júlio Dantas; O Castigo de D. João (1948) de Urbano da Palma Rodrigues; Um Amor Feliz (1986) de David Mourão-Ferreira; O Conquistador (1990) de Almeida Faria. Outros poderíamos ainda referir, mas para não alongar mais a lista cito, por último, um João de Távora, que encontramos em Partes de África (1991) de Helder Macedo.
 A Mulher que Venceu Don Juan trata o tema não apenas descrevendo o comportamento donjuanesco ao nível da acção, mas indagando e mostrando algumas causas desse comportamento, assumindo, por esta forma, uma vertente de análise psicológica e filosófica, focando a psicopatia, o narcisismo, a homofobia, que existem na raiz do comportamento  donjuanesco,  e baseando-a  numa componente ensaísta  através da qual se intercalam textos do Diário do Sedutor de Kierkegaard. Aceita-se hoje que o donjuanismo pode apresentar-se como camuflagem de homossexualidade recalcada. Tratando-se de uma questão muito complexa, e querendo discuti-la teoricamente dentro do entrecho ficcional, coloquei uma jovem doutoranda a preparar uma tese sobre o Diário do Sedutor de Kierkegaard, que fecha  Enter-Eller (1844), obra na qual Don Juan faz a sua entrada no universo da filosofia.
A peça de caça tem interesse enquanto está viva e pode eventualmente fugir. Logo que é caçada, o objectivo foi atingido, atira-se morta para o lado, ou empalha-se como troféu e passa-se a nova presa. Mas há uma particularidade muito interessante na última frase do discurso do sedutor:  “Se eu fosse um deus, faria com ela o que Neptuno fez com a ninfa: transformava-a em homem”.
A  ninfa a que se alude é Cénis, que foi transformada por Posídon em Ceneu, o homem por quem ela se tinha apaixonado.  Este desejo expresso pelo sedutor de mudar o sexo da amada, em processo fusional de assimilação, é bem significativo do recôndito desejo do sedutor. Através do coleccionismo o sedutor, mais não faz do que camuflar a sua insatisfação de que a  mulher  não possa ser transformada em  homem, como a ninfa Cénis. O verdadeiro objecto do desejo é outro homem: o  namorado da jovem seduzida, sendo ela a ponte entre ambos. Esta a razão pela qual o sedutor só deseja jovens comprometidas com outro homem, o namorado.
Heterossexual compulsivo, Don Juan acumularia aventuras para se afastar do objecto do seu desejo: outro homem.  Seduzindo a mulher de outro,  Don Juan estaria inconscientemente a relacionar-se com o marido / namorado, motivo maior de seu prazer, sendo a seduzida a ponte entre eles conforme assinala  Sandór Ferenczi  que publica,  em 1922, Le Symbolisme do Pont et la Légende de Don Juan,  metaforizando fantasmas edipianos e homossexuais: Entre Don Juan que passa na margem esquerda do rio com um cigarro apagado na boca e o diabo que fuma na margem direita, faz-se uma ponte sobre a água negra, que vai permitir acender o cigarro de Don Juan. Edipianismo, homossexualidade latente seriam as linhas de força do mito, visto da perspectiva de Ferenczi. Ainda na mesma linha, a  disputa com outros homens-ponte fará dizer ao Don Juan de Carlos Fuentes : "Nenhuma mulher me interessa se não tiver um amante, marido, confessor ou Deus, ao qual pertença ...".
O médico espanhol Gregório Marañon, na obra Don Juan, Ensayo sobre la Leyenda, de 1940, considera D. Juan um personagem escassamente viril, indo contra a ideia popular e até erudita que a ele se associa, como lemos em Urbano Tavares Rodrigues.[2] Para Urbano “ o donjuanismo radica num pletora do instinto sexual ou numa limitada avidez de absoluto.”
Estes textos  teóricos aparecem no meu romance como  espelhos  da intriga ficcional, através do subterfúgio de uma tese de doutoramento  que  a personagem Manuela prepara e defende sobre este mesmo tema.
Teresa Martins Marques

[1] Jean Rousset, Le Mithe de Don Juan, Paris, Armand Colin, 1976, pp.6-7.

[2] Urbano Tavares Rodrigues, O Mito de D. Juan e o Donjuanismo em Portugal, Lisboa, Ática, 1960.  Assina o verbete sobre esta temática na Enciclopédia Biblos (vol 2, 1997).  

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