15/04/2014

Vamberto Freitas e "A Mulher que venceu Don Juan"

A violência é um polvo tentacular. Não raro bem embrulhada em celofane com o falso rótulo de amor.
Teresa Martins Marques, A Mulher que Venceu Don Juan
Este é um romance especial por várias razões, sobretudo pela sua qualidade formal e temática abrangente e actualizadíssima, mais do que pertinente nos dias que todos nós vivemos numa sociedade que, por mais moderna e liberal se torne, vive ainda presa a velhos usos e abusos aos direitos humanos, uns reconhecidos pelos tribunais outros silenciados na longa noite da nossa história social. Não haverá nada de exclusivamente “português” nestas páginas, no que à violência física e emocional entre homens e mulheres diz respeito, e ainda muito menos em relações que, como diz a epígrafe que escolhi para este texto, se mantêm e se desenrolam durante dias e anos por entre a mais descarada chantagem de todo tipo, em que um casamento ou outra relação menos formalizada poderá se tornar numa outra espécie de escravatura, sem que as nossas instituições possam ou queiram actuar como acção preventiva de tragédias por demais anunciadas. É só ler os nossos jornais ou consultar os média em geral para ver quanto sofrimento poderá acontecer entre quatro paredes – ou mesmo na violência e abuso psicológico feito por palavras gritadas e utilizadas mortiferamente como punhais. Estarei aqui muito fora dos meus temas habituais? Creio que não. Pois este é um romance que também se ultrapassa si próprio, ou no que poderá ter sido a intenção inicial da sua autora. Para além do que aqui acaba de ser dito, entramos em páginas belas sobre o amor de igual para igual entre dois seres humanos, ou entre um grupo de amigos, como entramos nos corredores da academia lusa na nossa capital, assim como no pensamento filosófico e na arte literária canónica do Ocidente. Não é pouco para uma primeira ficção de uma autora desde há muito reconhecida como uma grande ensaísta literária, especializada nas obras de José Rodrigues Miguéis e de David Mourão-Ferreira, tendo habitualmente como pano de fundo da sua escrita toda a história literária do nosso país, e em outras línguas, tal como acontece de novo no presente livro. Venho aqui um pouco atrasado por algumas semanas após a sua publicação recente, quando o JL lisboeta já lhe dedicou mais de três páginas. Um sinal de força, sem dúvida, um reconhecimento que não acontece com frequência nem naquela nem em outras publicações do género.
Antes de mais, vamos às circunstâncias do aparecimento de A Mulher que Venceu Don Juan, de Teresa Martins Marques, actualmente investigadora da Faculdade de Letras em Lisboa. Alguém já disse, mas relembro aqui: é o primeiro romance português a ser publicado integral e originalmente no Facebook. Teresa Martins Marques aproveitou os muitos leitores com acesso imediato e gratuito às suas páginas virtuais como que num ensaio primeiro desta sua obra. Eu próprio testemunhei como era esperado cada capítulo, e reconhecia de imediato nestas páginas alguns nomes verdadeiros dos amigos e amigas que, ou conheciam pessoalmente a autora ou então, estou em crer, a ela se chegaram por estes e outros escritos seus. É raro, e desde há décadas caído em desgraça, o chamado “romance de ideias”, foi o tempo em que a arte literária se virava para si própria, com total desprezo por uma frase que dissesse alguma coisa vagamente relevante para o leitor, e muito menos ainda para a cultura do seu lugar e do seu tempo. Como diria João Barrento num dos seus livros de ensaios mais recentes, O Mundo Está Cheio de Deuses, é preciso “repolitizar” a arte, suponho que querendo dizer -- que contenha em si minimamente, no que à escrita concerne, algo mais do que um jogo inconsequente e nem sempre estético de palavras e frases desconexas, que se dirija ao meio social e cultural em que está inserida espelhando as suas misérias, injustiças e opressões numa demonstração de ética e estética, tendo o outro lado do coração humano como contraponto. É essa a leitura que fiz e faço deste romance, que contraria muita da nossa ficção inconsequente e quase ilegível, sem deixar de receber espaço privilegiado em muitas das nossas páginas literárias ditas nacionais.
A Mulher que Venceu Don Juan tem como trama no seu centro um casamento de longos anos entre um famoso cirurgião plástico no Porto, aqui de nome Amaro Fróis, e uma esposa que ele queria dondoca e peça ornamental, mas de origens nortenha e herdeira de uma grande fortuna, Sara, inteligente muito para além da vontade do marido, sofredora de violências de vária natureza às mãos do seu Don Juan, metido compulsivamente com haréns inteiros de mulheres, traficante de drogas e prostitutas, identidades sexuais escondidas no seu armário de luxo e de decadência absoluta, o homofóbico clássico e sem coragem ou dignidade para assumir a natureza do seu ser autêntico. O que é dito de homens, é igualmente dito de mulheres. O romance nunca quebra por uma só frase o seu impulso narrativo de denúncia e revolta, de coragem e generosidade por parte desta e de outras mulheres sofredoras que vamos “conhecendo” ao longo destas páginas de linguagens simultaneamente escorreitas e eruditas, por vezes entrando em zonas que ficam algures entre a ficção pura e o ensaísmo (Kierkegaard ocupa um outro centro desta fulgurante prosa), sempre irresistível para uma autora como Teresa Martins Marques. Não é a primeira vez que um romance oscila entre um género e outro, mas aqui esses movimentos entre a invenção pura e reflexão filosófico-literária é de uma fluência e significados pouco comuns entre nós. Ler este romance é como que fazer um seminário em literatura do nosso tempo vista pela psiquiatria mais avançada, o quotidiano das violências domésticas e extra-domésticas reinventado e ao mesmo tempo objecto de análise ponderada e fundamentada em obras dos mais diversos autores, especialmente europeus. O donjuanismo aqui, seja masculino seja feminino, nada tem de romântico, é o seu oposto – o imperativo da dominação absoluta do “outro”, que se torna mera peça utilitária, a doença da conquista pela conquista, a perversão da inocência, o sexo sem o mínimo prazer ou sublimação para além do ego necessitado e inseguro. Bem-vindos às relações oficializadas e legitimadas pela sociedade, mas que não deixam de ser outra espécie de “alterne”, por onda ronda sempre a morte de mulheres que não têm a coragem de enfrentar os seus opressores e abusadores psicopatas. É disto que é feito A Mulher que Venceu Don Juan, e, como já disse, de algo mais.
A geografia desta narrativa vai do norte ao sul do país, passando ainda pelo Brasil. Espreitamos também os corredores da Faculdade de Letras, onde se passeiam os mais fraudulentos “géneros” universitários, quer na pessoa de um ou outro aluno quer na de alguns “professores” que nunca deveriam pisar tal território do saber, estes felizmente escondidos entre a grande maioria de mentores e estudantes que o merecem, e os merecemos a eles – é nas Humanidades que reside a nossa cidadania, é aí que se grava e se testemunha a nossa memória colectiva, seja ela de dor e raiva ou de vida decente. De resto, temos aqui um vasto chamamento à literatura clássica, uma vez mais, do donjuanismo e não só, mas agora sob o ponto de vista hipercrítico de uma mulher muitíssimo bem formada, e de todo sensível ao melhor e ao pior em qualquer um de nós.
“Viveste – diz a narradora a dada altura, num momento de auto-análise – na gaiola, mas não foste feliz. Viveste no pântano e não foste livre. Foi o amor que fez a escolha sem ti? Qual amor? O que tu chamaste amor. O teu pai chamou status para a sua rica filha. Ou para a sua filha rica? Faz diferença a colocação do adjectivo. O que a tua mãe chamou ‘a ordem natural das coisas’, o casamento com um cirurgião plástico, lindo de morrer, dizia ela, que queria eu mais? Que importava que fosse vinte anos mais velho? Lindo de morrer. Sim, de morrer a conta-gotas”.
A Mulher que Venceu Don Juan torna-se arte como o mais determinado ajuste de contas, não necessariamente pessoal, mas sim com destruições de vidas mais vastas, quase generalizadas. Não interessa se com base numa vida vivida, conhecida entre outros, ou contada à mesa de um Café, ou num quarto vazio de tudo e cheio de nada. É o retrato de toda uma sociedade que sobressai aqui, é a espreita prolongada da pior das misérias por entre o luxo adquirido quase sempre através do crime ou da manipulação dos mais fracos e ingénuos, é a denúncia do que raramente chega a julgamento público, ou merece sequer a censura de quem faz que não vê este outro inferno em todos os estratos da sociedade. Teresa Martins Marques retira de toda esta fealdade – como alguém já escreveu sobre um artista plástico – a mais pura beleza.
Teresa Martins Marques, A Mulher que Venceu Don Juan, Lisboa, Âncora Editora, 2013.


Vamberto Henriques Ávila Freitas 
Nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1951 nos Açores. Frequentou o Liceu Nacional de Angra do Heroísmo e a Chino High School, Chino, Ca. Licenciou-se em 1974 em Estudos Latino-Americanos e fez estudos de Pós-Graduação em Pedagogia e Literatura. É presentemente leitor de Língua Inglesa e coordena o Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores. É também representante dos Açores no Conselho Nacional de Opinião da RDP.
 Trabalhos publicados em volume: Jornal da Emigração – a L(USA)lândia Reinventada –, Angra do Heroísmo, Gabinete de Emigração e Apoio às Comunidades Açorianas, 1990. Pátria ao Longe. Jornal da Emigração II, Ponta Delgada, Eurosigno, 1992. O Imaginário dos Escritores Açorianos, Lisboa, Eds. Salamandra, 1992. Para Cada Amanhã. Jornal de Emigrante, Lisboa. Eds. Salamandra, 1993. América. Entre a Realidade e a Ficção, Lisboa, Eds. Salamandra, 1994. Entre a Palavra e o Chão. Geografias do Afecto e da Memória, Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995 .
 Trabalhos publicados em revistas, jornais e suplementos culturais: "O Homem Suspenso, ou um outro Livro do Desassossego", Vértice, nº76, Janeiro/Fevereiro 1997. "A Critic's Notebook, de Irving Howe: Sociedade e Critica", Atlântida, XII, 1996. "Lá muito Longe para além do Mar: A nossa imigração na Califórnia", Atlântida, XL, 1995. "The Western Canon, de Harold Bloom: Sociedade, Literatura e Crítica", Atlântida, XXXIX, 1994. "Culture and Imperialism, de Edward Said: da Ficção imperialista e da Viagem para Dentro", Vértice, nº58, 1994. "História e Política em A Ilha de Aldous Huxley", Arquipélago (Ciências Humanas),Vol. XIII , 1994. "Crónicas da Diáspora: Um Espaço sem Fronteiras", Arquipélago (Ciências Sociais), Vol. VII, 1994. "Ida e Volta: À Procura de Babbit, de Ilse Losa. A Outra América e o Outro Babbit", Letras & Letras, nº 110, 1994. "José Rodrigues Miguéis e o seu Contrabando Literário", Vértice, nº 54, 1993. "Pós-Modernismo em Questão: The Critics Bear it Away: a Crítica da Crítica, Letras & Letras, nº90, 1993. "William Faulkner e João de Melo: De Yoknapatawpha ao Rozário da Achadinha" Atlântida, Vol. XXXVI, 1991. "Alguns Aspectos Faulknerianos na Obra de João de Melo", Letras & Letras, nº39, 1991. Tem publicado dezenas de artigos de crítica literária e de opinião no Diário de Notícias, em Lisboa; Açoriano Oriental e Correio dos Açores, em Ponta Delgada.
 Em colaboração com Adelaide Batista, preparou o estudo «Women's literary contribution in the Portuguese region of the Azores», publicado em Engendering Identities, Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, 1996. Direcção de Susan Pérez Castillo.

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