02/07/2014

Carolina Freitas (Jornal de Letras) entrevista Teresa Martins Marques

Carolina Freitas
1. Como surgiu a ideia de escrever este livro?
Num domingo de Agosto de 2012, recebi um telefonema de uma amiga dizendo que precisava urgentemente de falar comigo. É uma jovem mulher, inteligente, bonita e culta. A voz dela traduzia uma profunda angústia. Nesse dia completava 45 anos. O presente de aniversário que o marido lhe ofereceu foi a ameaça de a atirar para o fundo de uma barragem. Ela tinha razões para acreditar que ele poderia fazê-lo. Eu mesma recebi uma mensagem indelicadíssima avisando-me que deveria afastar-me dela. Não só não me afastei, como essa ameaça constituiu a motivação para escrever um romance-folhetim, que desse voz às vítimas de violência doméstica. O donjuanismo é, não raro, a capa sob a qual se escondem certas formas de violência com o falso rótulo de paixão ou até mesmo de amor.
2. Começou por publicá-lo no Facebook. Por que motivo(s) optou por esta via?
Quando criei a minha página do Facebook fi-lo com a intenção de a tornar um espaço de homenagem à Literatura e à Cultura. Aí, comecei por publicar ensaios relativamente longos sobre Cesário, Gomes Leal, Régio, Raul Brandão, Miguéis, Régio e Nemésio, extraídos do meu livro «Leituras Poliédricas», há muito esgotado. A recepção foi excelente e os leitores fidelizaram-se. Estavam criadas as condições para uma publicação serial retomando a tradição oitocentista.

3. E como foi esse processo? (quando começou e quando terminou; publicava excertos, capítulos inteiros?...)
A publicação iniciou-se em Outubro de 2012 e terminou em Maio de 2013. Ao longo de 28 sábados, capítulo a capítulo (entre as dez e as doze páginas), publicou-se todo o romance-folhetim. A actual versão em livro é refundida e ampliada.
4. Uma das possibilidades do Facebook é a interactividade. Como aconteceu neste caso? Houve muitas pessoas a seguir este romance-folhetim? E a comentar? Até que ponto essa interacção influenciou a sua escrita e a própria história?
A interacção com os leitores foi permanente, não apenas para transmitir opinião, mas também para dar sugestões de continuidade à história, que aceitei por diversas vezes. Foram ultrapassados os três mil comentários, incluindo neste número as mensagens privadas. O último episódio registou 196 comentários. A interacção epistolar é, aliás, característica do romance-folhetim. Eugène Sue, aquando da publicação de «Les Mystères de Paris» (1843-1844), chegou a manter um escritório para receber a numerosa correspondência dos leitores.
5. Que balanço faz desta experiência?
O balanço é muito positivo. Entre as pessoas da minha geração é ainda comum pensar-se o Facebook apenas como um meio perigoso e viciante, sobretudo para os jovens. Ficou provado que é uma ferramenta com extraordinárias potencialidades, se for usada de forma adequada. Foi também muito importante o convite que o romance-folhetim recebeu da parte de Vania Chaves e Isabel Lousada para encerrar o II Encontro Luso-Afro-Brasileiro «As Mulheres e a Imprensa Periódica», que decorreu na Faculdade de Letras em Julho de 2013, o qual registou a presença de muitos leitores, alguns vindos de diversos pontos do país.
6. Que questões quis tratar em «A Mulher que Venceu Don Juan?
Focam-se comportamentos violentos escondidos sob a capa donjuanesca - o poder da sedução, as manhas e estratégias de caça, o narcisismo e o recalcamento homofóbico, assentando numa componente ensaísta que discute os seguintes textos : «Diário do Sedutor» de Kierkegaard; «Le Symbolisme du Pont et la Légende de Don Juan» de Sandór Ferenczi; «Don Juan, Ensayo sobre la Leyenda», de Gregorio Marañon.
7. Pode falar-nos um pouco destas personagens?
O entrecho ficcional inclui três personagens de fundo donjuanesco. Amaro Fróis, cirurgião plástico, procura nas mulheres a vingança de um passado tenebroso; Manaças, serial lover, recalca uma pulsão proibida; Joana colecciona os namorados e os pais das amigas. Os três serão vencidos: o primeiro por uma mulher que subestimou; o segundo pelo verdadeiro objecto do desejo recalcado; a terceira por uma presidiária, cujo companheiro seduziu. A protagonista, Sara Dornelas, escapa à morte e encontra o amor, realizando, pelo estudo, um sonho antigo. Dois seres de eleição, a psicóloga Lúcia e Paulo, comissário da polícia, assumem um papel decisivo no desmantelamento de uma rede tentacular e no castigo dos criminosos, unidos por ignorados laços de sangue.
8. Creio que a sua primeira incursão na ficção foi um conto intitulado «Carioca de Café» (2009). De que trata? E está publicado em livro? É agora que se estreia no romance de ficção. Era um desejo antigo?
«Carioca de Café» é um conto publicado numa antologia intitulada «Viana a Várias Vozes», edição da Câmara Municipal de Viana do Castelo (2009), organizada pelo saudoso Fernando Canedo, director da revista « Mealibra», órgão do Centro Cultural do Alto Minho. O tema fulcral é a denúncia do preconceito relativamente à mulher brasileira em Portugal, com um pano de fundo histórico: a «Chronica Adefonsi Imperatoris» e o Recontro dos Arcos de Valdevez, objectos de estudo da personagem.
9. Como é a sua relação com a escrita? (costuma escrever? tem 'diários'? contos, poemas, romances na gaveta?) É um prazer, uma necessidade...?
A escrita sempre fez parte de mim, embora a parte publicada seja no registo de ensaio. Mas, mesmo nesse registo, há uma dimensão que releva de um tom mais comunicante, menos académico. Veja-se o título da minha tese de doutoramento sobre David Mourão-Ferreira: «Clave de Sol - Chave de Sombra», o qual intertextualiza um verso do longo poema In Memoriam Memoriae.
No meu estudo, quer ensaístico quer ficcional, prefiro os temas que abalam zonas de conforto. E tanto a ficção como o ensaio podem cumprir essa função, sem deixarem de ser o que inevitavelmente são: exercícios de linguagem. Os dois registos conjugam-se. Há sempre uma ou mais personagens que têm em mão um trabalho ensaístico. No caso de «A Mulher que Venceu Don Juan», são numerosos os trechos de autores citados, entre eles D. Francisco Manoel de Melo, Camilo, Kierkegaard e Stendhal. Há também uma dimensão histórica, aqui concretizada num episódio da Guerra Civil de Espanha.
10. Tem dedicado a sua vida ao estudo e à investigação, nomeadamente na área da Literatura e Cultura Portuguesas. De que forma vive esse trabalho?
11. Que autores/projectos/trabalhos mais a têm apaixonado? E porquê?
A minha regra de ouro é escolher sempre para objecto do meu estudo os escritores da minha predilecção. Foi assim com José Rodrigues Miguéis, autor sobre o qual nunca me canso de escrever e ao qual cheguei pela mão de David Mourão-Ferreira, sobre o qual continuo a escrever, ampliando a tese. Gosto de fazer voo picado sobre os textos, e delicio-me com as micro-análises a mostrarem os bastidores da criação artística, para o que muito contribui o trabalho arquivístico que fiz como responsável pela organização do acervo davidiano, na Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1997 e 2004.
12. Actualmente, é investigadora no CLEPUL. Que projectos têm em mãos? Também dá aulas?
Já não dou aulas e posso reservar todo o meu tempo para a escrita e para acções de divulgação. Recentemente levei aos estudantes das Universidades de Constanta e Bucareste vários textos sobre o tema do ciúme em Miguéis, Régio e David Mourão-Ferreira. Foi uma experiência muito gratificante e alguns alunos continuam a comunicar comigo, justamente na minha página do Facebook.
Estou neste momento a trabalhar na biografia de Amadeu Ferreira, jurista, professor, poeta, romancista, tradutor, uma das figuras que mais contribuíram para o reconhecimento oficial da Língua Mirandesa como segunda língua de Portugal.
13. Onde nasceu? Como foi o seu percurso até ir para a universidade? O que a levou a seguir Letras?
Nasci na Guarda, onde fiz a escola primária. Frequentei depois o Colégio de Nossa Senhora da Bonança em Vila Nova de Gaia, com professores de alta qualidade, sobretudo nas áreas das Humanidades. Frequentei os últimos dois anos do Liceu na Guarda, tendo como professor de Grego um homem competentíssimo, Abílio Bonito Perfeito, autor do livro único e da Gramática de Grego. Estranhei bastante a pacatez da cidade, mas rapidamente criei dois pólos de interesse: a redacção do jornal estudantil « Riacho» e sobretudo um cineclube, onde coloquei em prática a formação que José Vieira Marques, futuro director do Festival de Cinema da Figueira da Foz, nos tinha ministrado num Curso Livre de Cinema no Colégio de Nossa Senhora da Bonança.
Nunca mais esqueci o meu filme preferido desse tempo,« Morangos Silvestres», de Ingmar Bergman. Quem sabe se não foi por isso que mais tarde escolhi como tema de tese a memória e a inquietude…
Ir para Letras era uma inevitabilidade, sendo eu viciada na leitura. Difícil foi decidir se deveria escolher Românicas, História ou Filosofia. Escolhi Românicas, mas creio que nunca desisti verdadeiramente dos outros dois cursos e, neste romance, mando fazer às minhas personagens os trabalhos que eu não pude fazer como aluna.

Cf. O artigo de Carolina Freitas « Teresa Martins Marques - Um romance-folhetim do século XXI» in «Jornal de Letras» de 22 /1/ 2012 (pp.15-16) .

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