20/07/2014

Os Amantes de Primeiras Edições (A propósito do romance A Mulher que Venceu Don Juan) Por Eugénio Lisboa

O livro que Teresa Martins Marques acaba de publicar, A Mulher que Venceu Don Juan, é um empolgante romance, que se revê, folgadamente, no protocolo do “roman-feuilleton”, que fez fortuna em meados do século XIX. Cultivaram-no, entre outros, Alexandre Dumas (Pai), Eugène Sue (Les Mystères de Paris, Le JuifErrant), Ponson du Terrail (Les Exploits de Rocambole), Paul Féval (Les Mystères de Londres, Les Amours de Paris), FrédéricSoulié (Les DeuxCadavres, Les Mémoires du Diable), ou, entre nós, Camilo (Os Mistérios de Lisboa) ou Eça/Ramalho (O Mistério da Estrada de Sintra).
O próprio desta ficção, que se publicava, originalmente, semana após semana, nos jornais, era arrastar, em continuada suspensão, uma interminável e sensacional intriga, com pistas e contra-pistas, e revelações cada vez mais surpreendentes – e sempre provisórias – à medida que a narrativa progredia e, no final, um saboreado ajuste de contas, a que não havia que fugir e que tinha a função terapêutica de limpar o fígado aos leitores e aos protagonistas do “lado certo”. De tudo isto participa desenvoltamente este romance “moderno”, que a autora quis que servisse de veículo, precisamente, para um ajuste de contas com os Don Juans de serviço, os quais acumulam, não infrequentemente, o gosto de coleccionar conquistas, com o gosto, não menos maligno, de maltratar, física, psicológica e moralmente, as conquistas perpetradas.Neste aspecto, a criação do monstro Amaro Fróis é façanha de mestre. Como o é o dos outros “donJuans e Juanas” (o Manaças, a Juana), que se destacam, como criação de personagem, com um relevo que deixa um pouco apagados os restantes, que povoam o universo ficcional congeminado por Teresa Martins Marques. Logo de entrada, a pequena cena da ceia, no restaurante Olivier, a seguir a um espectáculo de ópera, em Lisboa, poderia ter a assinatura de um dos grandes mestres do realismo: Flaubert, Maupassant, Martin du Gard.
Não se trata, note-se, de um romance feminista e, muito menos, de um panfleto do mesmo cariz. Teresa Martins Marques fustiga, com igual eloquência e abundância de argumentos, Don Juans e Donas Juanas. Porque estas últimas existem, em igual profusão, causando, a si próprias e aos outros, o mesmo teor de estragos que deixam, atrás de si, os homólogos do sexo masculino. Para dar só um exemplo, conta-se a história de uma autora e actriz francesa, Mademoiselle Dubois, que se gabava de ter entretido, ao longo de um período de vinte anos, 16 537 “affaires”, ou seja, cerca de três por dia... Ao lado disto, o Don Juan (Tenório), com as suas míseras 2594 conquistas, não passou de um “dinkytoy”.
Teresa Martins Marques disseca, com mão experta de romancista, de ensaísta e de psicóloga, este tipo de personagem ambíguo e devorador (inseguro) que é o coleccionador de conquistas femininas (ou masculinas). Alguns especializam-se em desflorar virgens, como o editor inglês Leonard Smithers (1861 – 1907), do qual, Oscar Wilde, sublinhando, ironicamente, esta inclinação, dizia: “Smithers adora primeiras edições.” A virgindade não é, no entanto, obrigatória, para o orgulho do Don Juan. O importante é mudar, isto é, largar a pessoa, uma vez comida – uma vez. Por isso, mudar de mulher, mesmo não virgem, mesmo casada, é não querer uma repetição, isto é, uma 2ª edição da mesma obra.
Trata-se, pois, de um livro – o de Teresa Martins Marques – não diria tanto de tese, mas antes de causa (ou de causas). Estas obras podem facilmente tornar-se ensaios disfarçados de ficção, sendo, nesses casos, de leitura, em geral, menos apelativa. Para o evitar, Teresa Martins Marques resolveu desposar o protocolo capitoso e ruidoso do “roman-feuilleton” (no primeiro ciclo de Les Thibault – “Le Cahier Gris” – Martin du Gard não hesitou em usar o cheirinho bom do romance policial, logo a partir da 1ª página...) O “roman-feuilleton” cativa sempre o leitor, mesmo o moderno.O apelo é tão forte, que se conta ter sido Eugène Sue – o dos Mistérios de Paris – em certa ocasião, solto da prisão, para que a publicação de um seu romance em folhetins não fosse interrompida... Cumpra-se a lei, sim, mas devagar! (Aqui fica o palpite, caso a Teresa, no futuro, venha a necessitar de um precedente jeitoso!)
Sem deixar de dar o seu a seu dono, isto é, sem deixar de reconhecer o que a leitura deste livro tem de empolgante, devo, no entanto, acentuar que ele não é folhetim quimicamente puro: mistura, galhardamente, a narrativa de acção sensacional com o ensaísmo escarolado, bem informado, erudito e minucioso, às vezes, quase até ao desespero. Montherlant fá-lo, com eficácia felina, nas páginas inesquecíveis e magnéticas da sua tetralogia Les JeunesFilles  e um pouco, mas sempre com grande desenvoltura, em toda a sua obra romanesca. Misturando alegremente os géneros, ao contrário do que recomendava a retórica clássica, pois, dizia ele, com maldade de boa pontaria, se a grande literatura clássica não mistura os géneros, a vida não faz outra coisa que não seja misturá-los. Teresa Martins Marques imita a vida e não a arte clássica – e fá-lo com descaramento saudável. Misturar o douto ensaísmo e, mesmo, o material de construção de um doutoramento, com os saltos de acção imprevistos, mais próprios do Rocambole, dá-lhe, a ela, gozo, e, ao leitor, gozo e proveito. No entanto, a autora, por vezes, exagera: quando, por exemplo, a protagonista Sara, fugida ao monstro do marido (Amaro), resolve deambular, turisticamente, por Lisboa, a autora observa que ela (Sara) “queria ver com os seus olhos o que lhe dizia o Guia de Portugal, na edição da Fundação Gulbenkian, reproduzindo a 1ª de 1924, dada à estampa na edição da Biblioteca Nacional, pela mão zelosa de Raul Proença.” Esta gratuita exibição de conhecimento bibliográfico, inserida no miolo do fluxo da narrativa, soa,não só, a despropósito, como se torna quase cómica. Digamos que a minúcia bibliográfica, aqui, não rima com a música do fluxo novelesco. Não estou a ver Martin du Gard, nos Thibault, quando insinua a influência que terá tido, sobre Jacques e Daniel, a leitura de Les Nourritures Terrestres, a entrar em precisões de autoria (André Gide), nem de editor, nem de ano de publicação, nem de qual fosse a edição lida pelos dois adolescentes... Mais, o grande romancista francês nem sequer indica o título da obra que tanta repercussão teve em todo o mundo: transcreve algumas passagens mais escaldantes, que teriam feito ferver a imaginação exaltada de Jacques e Daniel. É, a pensar nisto, que pode causar alguma crispação toda a tralha bibliográfica, a atravancar a narrativa. O mesmo se pode dizer de certos diálogos como o que se trava entre Lúcia e Manuela, demasiado “didácticos” e artificiais, obviamente destinados a “passar informação” ao leitor... (A propósito de Lúcia., seria interessante comparar o aspecto funcional desta personagem com a personagem típica do “roman-feuilleton”, exemplificada no príncipe Rudolfo, de um romance de Eugène Sue, o qual assombra Paris, escondendo-se no baixo-mundo, punindo os maus e recompensando os virtuosos, que, misteriosamente protege... Ver-se-á, no romance de Teresa, que Lúcia andou, secretamente, por detrás de muita coisa boa.)
Seja como for, prefiro, francamente, o descoco indisfarçado do ensaísmo, que faz contraponto desavergonhado com o cavalgar incontido das pistas escandalosas e das revelações melodramáticas, aquecidas a temperatura de alto forno.
Resumindo muito, Teresa Martins Marques produziu um primeiro romance forte, original e denso, um material fogoso de debate, sobre um problema que assola esta nossa sociedade, em tempo de crise: o da violência doméstica, o da perda de auto-estima, num universo em que os valores se dissolvem e o bezerro de ouro se torna o único deus reverenciado, sobretudo se entregue à fruição de poucos, com o apoio e a bênção dos que nos governam, detêm o poder e abrem as portas do inferno aos desprotegidos.

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